terça-feira, 21 de abril de 2015

jornal i#19 O totalitarismo da saúde pública

Hoje, para o jornal i:

Enérgico e decidido, é assim que o governo pretende proibir a venda de álcool a menores de 18 anos, também eles enérgicos e decididos. Esta intenção de engenharia social apenas se compreende se entendermos o Estado como “o grande babysitter”, encarregado de expropriar um elemento da cartilha das responsabilidades parentais: assegurar o bem-estar dos filhos e tomar conta deles. O momento presente, de promoção de políticas de natalidade, não podia ser mais oportuno para passar um atestado de incompetência aos papás. Já agora, porque não institucionalizar os petizes em ambientes puros, livres de “perigos” ou perversidades, e assim limar, a régua e esquadro, as arestas das suas imperfeições? 

Mas relembro o básico: as preocupações com a saúde do menor, além de fazerem parte daquele leque de responsabilidades, são de teor médico e não pertencem ao âmbito do poder político. Os médicos podem desaconselhar o consumo de álcool e os cientistas provar os seu malefícios em menores. Mas, sobretudo, cabe aos pais explicar à canalhada isso mesmo; faz parte da construção da relação filial. 
De resto, o álcool não é ilegal, logo não deve ser tratado como uma substância ilícita, muito menos quando o próprio governo cobra impostos sobre o seu consumo, enchendo os cofres do Estado com uma substância cuja venda publicamente proíbe. Um bocadinho hipócrita, não? 

Quando dão ao poder o controlo da saúde dos seus filhos, os pais submetem-se a uma situação em que aquele os pode proibir de andarem à chuva para não se constiparem. E uma vida sem constipações é uma vida estéril.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Fabiano Calixto

o amor, você me disse,
na primavera passada,
enquanto guardávamos
dentro de nosso livros
umas folhas de plátano
que havíamos colhido
na alameda da universidade,
é a parte que mais arde
na eternidade.

(excerto do poema de Fabiano Calixto, "Canção de Ninar", in Equatorial, p. 66)

o cinema

tem um efeito único: resolve umas questões de estética e propõe umas quantas outras. Como, por exemplo, o caso Claudia Cardinale.








La ragazza con la valigia, Valerio Zurlini (1961)

terça-feira, 14 de abril de 2015

jornal i #18 Sampaio da Nóvoa: a "nosso" Zizek?

Texto de hoje, no jornal i: 


O mui intelectual e catedrático Sampaio da Nóvoa foi tocado por um sentido de dever para com os outros. Ouvir um discurso de Sampaio da Nóvoa é arriscar encontrar resposta para a pergunta de Platão, apresentada pela boca de Sócrates, “o que é uma comunidade justa?”. Sampaio da Nóvoa dá-lhe corpo, o seu corpo, literalmente: é aquela onde os melhores governam com sabedoria. Sampaio da Nóvoa é o melhor. O critério é qualitativo: governam os melhores, os que prescindindo dos seus interesses particulares e egoístas (quem?) contribuem para a colectividade social depois de uma catedrática e virtuosa educação que os coloca – a esses pedagogos e intelectuais do interesse público – naquele patamar de superioridade moral que lhes permite olhar a Nação, de cima para baixo, como Colectividade. Tanta correcção, tanta bondade, confesso, dá-me uma irrefreável vontade de me tornar uma marginal e ir pecar sem dó nem piedade.

Mas ouvir um discurso ou entrevista de Sampaio da Nóvoa como a de 2011 a António J. Teixeira nos poucos minutos do seu dia em que não está a ler Lacan ou Derrida recorda-me a primorosa encenação da persona do filósofo Slavoj Zizek, o Élvis da “Cultural Theory”, não só no estilo “discurso logo existo” ou no desígnio heróico. De facto, é muito comum o filósofo competente e letrado sofrer de alguma incontinência verbal, perdendo-se no seu vocabulário abstracto mas triunfal, pejado de proclamações assertivas mas abandonando o compromisso com a dureza dos factos. Ninguém é perfeito, muito menos o intelectual das esquerdas. Mas, se há um apelo a fazer a Sampaio da Nóvoa, ele é simples: deixe as grandes Teorias, em forma de proclamação poética, na sala de aula, porque o mundo fora da universidade não é dos filósofos, é dos realistas, e um pouco de realismo nunca matou ninguém.


sábado, 11 de abril de 2015

memória e identidade

"Intrínseca à experiência humana - aquilo que nos separa dos animais - é a memória das coisas passadas. E é também a transformação dessa memória numa identidade consciente de si mesma. Por isso, a perda imprime-se nos nossos espíritos e almas e forma-nos. É parte daquilo que somos."

Andrew Sullivan, A Alma Conservadora, p. 21.

o sol de todas as minhas primaveras

Acabando com tantas dúvidas, há um ano o teu sorriso passou a resumir o sol de todas as minhas futuras primaveras.

terça-feira, 7 de abril de 2015

início do fim de Mad Men



Acabo de ler que no dia 5 começou, nos EUA, o princípio do fim de Mad Men, depois de 8 anos de metáforas e analogias a beliscar a perfeição televisiva. Incontornável é o vulto sorumbático de Donald Draper. Tudo nele é energia esmagadora: do sobrolho franzido à boca comprimida que, talvez, nos vá dizer alguma coisa sobre si e sobre os fantasmas que, às vezes, em casa, lhe batem à porta. Com força. Homem recatado mas veemente, elegante e autoritário, com um espírito irrequieto e um coração caótico pesado de mágoa. Uma pose marcial, dura, mas ao mesmo tempo visivelmente sofrida: lê-se no rosto a impiedade da vida, a ideia de que o homem é o lobo do homem. 

jornal i #17 Da utopia do multiculturalismo à distopia de "Submissão"

Hoje, para o jornal i:

Num livro, intitulado “The Utopia Experiment”, de Dylan Evans, conhecemos a história de um excêntrico que decide fundar uma sociedade utópica na Escócia. Uma vez lá, afastado do mundo e da civilização, Dylan acompanha a transformação da utopia em distopia e nós lemos como é fácil uma alma, do próprio Evans, transformar-se em rebuçados desfeitos. Enfim, Hobbes tinha razão.

Fenómeno semelhante foi esse delírio utópico de alguns intelectuais (Kymlicka, por exemplo): o “progressismo” multiculturalista, que, numa Europa modernaça e de consciência tranquila, permitiu a imigração sem exigir integração, o que destruiu a coesão social, minou as identidades nacionais e degradou a confiança entre vizinhos. Na Alemanha, em França e no Reino Unido as consequências estão aí: sociedades fragmentadas, minorias alienadas, cidadãos ressentidos e extremismo em grandes doses.  

E é justamente num desses países, França, que surge “Submissão”, de Houellebecq, famoso por “Partículas Elementares” e visto como um niilista. “Submissão” é um sinónimo possível de islamismo, mas um leitor mais atento concordará que a trama se assemelha a mais um brilhante exemplo de distopia, ao estilo de Orwell e de Huxley. O livro, que chegou às bancas portuguesas a semana passada, retrata justamente a fraude tardia do multiculturalismo: o islamismo, amparado e protegido pelo multiculturalismo do Ocidente, toma as rédeas do poder em França. É o início do fim da Europa que conhecemos.  

quarta-feira, 1 de abril de 2015

thinker


Walter Gramatté, Thinker, 1922.

período de gestação

"Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas. Acreditem que sim, e passamos ao capítulo seguinte".

Antes do degelo, Agustina, p. 13.