sábado, 29 de agosto de 2015

é preciso alongar

«Estamos cansados, estamos feridos, e principalmente estamos confusos. Está tudo num ritmo que é muito mais acelerado que a nossa própria respiração, um ritmo que não nos é natural. Parece que agora tudo acontece à nossa frente, à frente dos passos que conseguimos dar. [...] Ninguém consegue fazer uma corrida sem alongar de vez em quando. O mundo, principalmente o mundo ocidental, está preso à corrida. É preciso alongar a cabeça e o coração, é preciso sossegar.»
Matilde Campilho no Jornal de Negócios de ontem.





quinta-feira, 27 de agosto de 2015

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Sequências (2)

















sequências









Eyes Wide Shut, Stanley Kubrik (1990)

Jornal i #33 - Três conquistas para o feminismo numa semana


Ontem, para o jornal i:  

1. A semana passada, esclarecendo atoardas e alguns incautos – sobretudo os que não repararam no desnorte do PS pós seguro –  Maria de Belém anunciou quando anunciará a sua candidatura à Presidência da República. Imediatamente Manuel Alegre versejou que já era tempo de uma mulher na Presidência. Belém deve ir para Belém, não por ser competente mas, simplesmente, por ser Maria. Louvada seja Maria. Será, dois séculos volvidos, a única Maria a representar a República Portuguesa, depois de D. Maria I e D. Maria II.

2. Na mesma semana, os jornais ingleses davam nota de uma  ex-baterista de MIA, Kiran Gandhi, que decidiu libertar-se de (mais) uma manifestação do opressivo patriarca: o tampão. Vai daí a senhora decide percorrer a maratona Londrina  desembaraçada da presença de um absurdo  “chumaço de algodão”. A experiência ficou registada no seu blog, espirituosamente intitulado, “A Modern Period Piece” e numa fotografia visceral final. 


3. A excitação atingiu proporções colossais com o anúncio  da autorização da venda do primeiro viagra feminino nos EUA cuja atuação é, naturalmente, diferente da do viagra masculino. Esse não foi, contudo, um aspeto suficiente para travar a libido feminista.   Quanto a mim, confesso que sinto alguma vergonha alheia e muita curiosidade para saber qual seria a reação de Donald Trump a 2 e 3.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

ninguém está a salvo


#32 jornal i: David Foster Wallace chega ao cinema


Hoje, para o jornal i, 

“I think that if there is a sort of sadness for people under 45, that’s something to do with pleasure and achievement and entertainment. Like a sort of emptiness at the heart of what they thought it was going on”. Dou voltas e mais voltas a esta frase de David Foster Wallace, esse perscrutador dos mistérios do humano, que nos é apresentada no filme “The end of the tour” (James Ponsoldt), sobre uma entrevista de cinco dias entre o repórter da revista Rolling Stone, David Lipsky (Jesse Eisenberg) e aquele aclamadíssimo escritor interpretado por Jason Segel.

Foster Wallace já não é dos fãs que o liam ou dos amigos que o conheciam: passou a ser culturalmente de todos, num processo que – é mera suposição, confesso – culminará com um resultado semelhante ao de Hitchcock, que quase fez de todos, quando pronunciam o seu nome, “cinéfilos”, verdadeiros espectadores apaixonados pelo “género”, um mestre do suspense conhecido por todos, mesmo aqueles que nunca ouviram falar de “Rebecca” (1940) ou “Notorious” (1946).

A história que o livro de Lipsky “Although of Course You End Up Becoming Yourself”, publicado em 2010, relata além de verídica é fascinante mas, o filme, parece ficar aquém. Há desde logo o estilo “bromance”, que relata uma viagem de “bonding”, entre dois homens, preenchida por momentos de partilha de M&M’s e o entoar de uma música de Alanis Morissette. Mas o verdadeiro desafio de transformar o livro de Lipsky num filme, abdicando do artifício da palavra escrita, passa não só pela representação da solidão, crua e dura, que fulminou Foster Wallace, como também pela representação de um homem que olhava tudo com olhos pensativos, que vêm para além das coisas e das pessoas e parecem assustar-se. Um homem com qualquer coisa a roê-lo por dentro, o que é um dom e um sofrimento, sem nunca estar contente, sem se entregar, receando tudo aquilo que se passa em volta dele. Há poucos atores capazes de interpretar este “tipo”, com a intensidade e naturalidade apropriadas e não me parece que Marshall, de “How I Met Your Mother”, tenha sido uma escolha avisada.













domingo, 16 de agosto de 2015

terça-feira, 11 de agosto de 2015

a most violent year






A Most Violent Year (2014), J. C. Chandor

inconveniência necessária

"Nunca a tinha visto nua, envergonhei-me. Hoje posso dizer que foi a vergonha de pousar com prazer o olhar no seu corpo, de ser testemunha participante da sua beleza de rapariga de dezasseis anos, poucas horas antes que o Stefano lhe tocasse, a penetrasse, a deformasse, talvez, engravidando-a. Nessa altura foi apenas uma tumultuosa sensação de inconveniência necessária, uma situação em que não se pode voltar os olhos para outro lado, não se pode desviar a mão sem reconhecer a nossa perturbação, sem a declarar precisamente com esse retraimento, sem entrar em conflito com a imperturbada inocência de quem está perturbando, sem exprimir, com essa rejeição, a violenta emoção que te domina,  e por isso te obrigas a ficar, a pousar o olhar nas costas de rapaz, nos seios com mamilos inteiriçados, nas ancas estreitas e nas nádegas rijas, no sexo negro, nas longas pernas, nos joelhos macios, nos tornozelos sinuosos, nos pés elegantes; e fazes de conta que nada se passa, quando afinal tudo está a acontecer, presente, ali, no quarto pobre e escuro, em redor a mobília miserável, sobre um pavimento irregular manchado de água, e agita-se-te o coração, imflamam-se-te as veias.
      Lavei-a com gestos lentos e cuidadosos, primeiro com ela acocorada no recipiente, e depois pedindo-lhe que se pusesse em pé, e ainda tenho nos ouvidos o ruído da água a gotejar, e ficou-me a impressão de que o cobre da tina era de uma consistência não diferente da carne de Lila, que era lisa, rija, calma. Tive sentimentos e pensamentos confusos: abraçá-la, chorar com ela, beijá-la, puxar-lhe os cabelos, rir, fingir competências sexuais e instruí-la com voz douta, distancia-la com as palavras, justamente no momento de maior proximidade. Mas por fim ficou-me apenas o pensamento hostil de que a estava a lavar da cabeça as solas dos pés, de manhã cedo, só para que Stefano a sujasse durante a noite. Imaginei-a, nua como estava naquele momento, cingida ao marido, no leito da casa nova, enquanto o comboio estrepitava por baixo das janelas, e a carne violenta dele  entrava nela com um golpe seco, como a rolha de cortiça empurrada pela palma da mão para dentro do gargalo de uma garrafa de vinho.  E de repente pareceu-me que o único remédio para a dor que estava sentindo, que sentiria, era encontrar um recanto bastante retirado para que Antonio me fizesse a mim, as mesmas horas, exatamente a mesma coisa."

Elena Ferrante, A Amiga Genial, p. 249. 

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

rentrée

jornal i# 31: A ambiguidade de Hélia Correia


Ontem, no i,

Hélia Correia (HC) era uma autora discreta da literatura portuguesa até que o seu telefone tocou anunciando que ganhara o prémio Camões. Isto ocorreu numa altura em que estava, segundo a própria, no máximo do seu isolamento. 

Há desde logo esta primeira ideia que confirma um estágio de solidão ou “infelicidade” comum a alguns escritores. Depois há “Bastardia” (2005), que li antes do anúncio do prémio. Este é um livro que, de uma forma ou de outra, nos ataca por todos os lados: pela personagem principal, Moisés, que sentia uma “estranha comoção que transtornava os tios” tocado por uma ansiedade que, pela ausência de um objeto indefinido, é horrível; pelo vocabulário áspero e cruel que a autora imprime ao longo de todo o texto reflexo do ambiente que descreve de vidas que se vão costurando enquanto o amor anda a par com a dor; e também pela súbita memória, violenta, de sair da terra que nos viu nascer. 

Mas HC saiu do seu isolamento para receber o prémio Camões, que dedicou à Grécia.  Pouco depois foi convidada a participar numa sessão pública de solidariedade com a Grécia em que dissertou redonda e nervosamente, inflamada pelos seus colegas de colóquio (Francisco Louça, Pacheco Pereira, Mariza Matias,  Manuel Alegre, et al), comparando mesmo a “ditadura da economia e das finanças” em que alegadamente vivemos aos tempos de... Salazar! 

Tudo isto para dizer que a ambiguidade do autor e da obra, sobretudo na ressonância equivocada que pode ter em nós, é extraordinária. Haverá diferenças entre um autor de direita e um de esquerda? Poderemos dividir a qualidade artística do escritor nestes termos? E a Humana será divisível? O escritor também é pessoa e, por isso, complexo e contraditório. Também por isso, irredutível às suas convicções ideológicas.