terça-feira, 27 de setembro de 2016

Jornal i #79 - Quem não deve não teme? Snowden discorda

A prosa de hoje para o i,


“Snowden”, de Oliver Stone, não é sobre um banal whistleblower. É um filme sobre um patriota, um admirador de Ayn Rand, um homem dedicado ao seu país que, com o passar do tempo, se apercebe da profundidade dessa sua ilusão. A fórmula usada neste filme não é inovadora, já a encontrámos de forma vincada no clássico sobre o Vietname “Born on the Fourth of July” (1989). “Snowden” tem informação, dados. Computadores e vigilância. É esse o tema principal do filme (e o maior contributo de Snowden): a forma como as agências securitárias norte americanas, abençoadas por Obama, estão autorizadas, de forma discricionária e não sujeita ao controlo democrático, a monitorizar e violar a privacidade de quem entendam, sem terem sequer de justificar os critérios adotados na sua ação vigilante.

Aos que pelos dias de hoje defendem a filosofia simplista do “quem não deve não teme”, recomendo que vejam o filme com atenção, em particular o diálogo em que Snowden (interpretado de forma magistral por Joseph Gordon-Levitt) alerta a sua companheira para os perigos de não tapar a câmara do seu computador portátil. O filme e esta cena em especial recordam-nos que a privacidade não serve primariamente para proteger um “segredo” ou lançar um manto de fumo sobre aquilo que ilegitimamente queiramos esconder. Os seus defensores mais acérrimos. que como eu, fazem dela objeto de estudo, têm consciência de que a privacidade é um valor estruturante da pessoa humana, é um valor em si. Tem, assim, um sentido ontológico, caracterizando-se pela sua incomunicabilidade: a estrutura da pessoa é una e total, fechada, absoluta, impartilhável.

Quando se defende a privacidade, o que se visa proteger é o direito que cada um tem de construir o seu próprio ser, em diálogo consigo mesmo, assente na faculdade – mas não na obrigatoriedade – de partilhar com o mundo quem é, como é e como quer ser, para que o mundo compreenda, exclusivamente através e a partir de si, quem se quer ser ou quem já se é. Prima facie, esta é uma escolha exclusiva que compete a cada um definir: o que partilha, o que diz, o que mostra, como se dá a conhecer aos outros, sem que daí se deva concluir pela ilegitimidade da ação ou omissão. Podemos admitir não ser este um valor absoluto, como não são em sociedade todos os restantes valores estruturantes da pessoa humana, como a liberdade ou a propriedade.

As suas limitações, porém, devem ser excecionais e bem justificadas, em função e à luz dos princípios da proporcionalidade e da necessidade. A privacidade traduz-se também no direito que temos de controlar a nossa imagem, a forma como a projetamos no mundo, e a nossa identidade. É esse controlo que nos permite escolher as relações que temos com os outros, de amor, de amizade, de partilha de sonhos, dúvidas, inseguranças, pensamentos e ideias. É isso que nos permite ter controlo sobre a construção da nossa personalidade. Como diz o próprio Snowden, a privacidade é o “right to the self”. E foi a este amparo fundamental e natural do homem, enquanto ser social, que Snowden, com muitas e difíceis escolhas pessoais, dedicou a sua vida. Bem haja.

sábado, 24 de setembro de 2016

o cachimbo

Lembro-me bem do cheiro mas o que me impressionava era o ritual. Observava-o enquanto, minuciosamente, colocava e amassava o tabaco, com uma apropriada dose de firmeza. Acendia-o com inalações languidas, compassadas, preguiçosas, como que arejando a sua mente das preocupações  terrenas. Havia nos seus gestos, em todo este processo, algo de transcendente e metafísico. Sentia o meu Pai satisfeito, relaxado, bem chegado a casa, depois de, como ele dizia (e ainda diz, às vezes, com os olhos arregalados e plenos de si, um patriarca preocupado com  a sua prole), "ganhar a vida". Lentamente, o fumo saia-lhe da boca e expelia, em bafos longos, um fumo branco e espesso que ficava a passear por ali, a planar no ar. 

Meu querido Pai: esta frágil satisfação, este seu breve contentamento, confisco-os eu, hoje, agora,  deste sítio tão longe de si, para mim, para que os transforme em memórias de uma infância quente e aconchegante.

Bem haja.




terça-feira, 20 de setembro de 2016

Jornal i #78 - Julia Louis-Dreyfus: a Meryl Streep dos Emmys

Hoje para o i,

Será Hillary Clinton a primeira mulher à frente dos destinos dos Estados Unidos da América (EUA)? Não creio. Pelo menos, na televisão já existe uma mulher aos comandos do mundo livre e ocidental: Selina Meyer, interpretada por Julia Louis-Dreyfus em “Veep”, uma sátira política que reverte a visão ideal de clássicos como “The West Wing”. 

Não exagero quando digo que Julia Louis-Dreyfus ficará para a história da comédia. E o seu desempenho enquanto Elaine Benes, na melhor série do estilo (“Seinfeld”, claro), surge como um pequeno preâmbulo para o papel de “Veep”, a vice-presidente narcisista que, quase por acidente, será “Madam President”, uma poderosa mulher de tailleur com todas as fraquezas de uma pessoa normal, mas arrogância e ganância monstruosas.

Sobrevivendo a vários embaraços políticos, gafes e “gates”, com um look semelhante ao de Sarah Palin, com comportamentos e comentários inapropriados mas com um olhar e postura angelicais, Louis-Dreyfus combina uma pequeníssima (literalmente) presença física e uma aparência adorável com o efeito devastador da sua passagem pelos corredores da Casa Branca, insultando e praguejando com o staff em seu redor e gerindo o caos com uma capacidade única de afirmar banalidades e clichés.

Curiosamente, se Hillary perder, creio que assistir a “Veep” é uma antecipação da futura administração de Trump. Há semelhanças, por exemplo, em matéria de gafes: Trump errou a propósito do 9/11 chamando a essa terrível data 7/11 e ocorrem-me várias citações descabidas de Meyer. Mas há mais pontos em comum, como a denúncia da legitimidade de candidaturas à Casa Branca de certos políticos: Trump apresentava a dupla cidadania (EUA-Canadá) de Ted Cruz e Meyer questionava o local de nascimento de um governador com origens asiáticas.

No momento atual, em que as séries invadiram os nossos hábitos diários, Julia Louis-Dreyfus é, por comparação, uma espécie de Meryl Streep dos Emmys: seis nomeações seguidas com “Seinfeld” e quatro com “The New Adventures of Old Christine”. Com “Veep” foi quatro vezes nomeada e premiada no espaço de 25 anos. Ontem à noite, depois de, num discurso, reconhecer que a série “parece mais um documentário da realidade”, recebeu o quinto Emmy de melhor atriz em série de comédia.

dedicatória


Algures perto da Casa Branca em DC.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Veep


 
                                 
 

Pela 5ª vez consecutiva Julia Louis-Dreyfus vence o Emmy de melhor atriz em série cómica. Sempre fui sincera a propósito das minhas afinidades com Selina Meyer.  

o meu primeiro Hopper


Eleven A. M. (1926)
Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, Smithsonian Institution, Washington, DC, Gift of the Joseph H. Hirshhorn Foundation, 1966

Por acaso não estava sozinha, passei o dia com o Tomás que, felizmente, me fez companhia. Mas a solidão estava por lá.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

fim de verão







If only it could be like this always, always alone, always summer, the fruit always ripe, and Aloysius always in a good temper.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Jornal i#77 - Virtudes públicas, vícios privados

Hoje, para o i,


Aproveitei as férias para ler alguns dos livros de Camilo Castelo Branco vendidos com o “Expresso”. Destaco na crónica de hoje “A Queda dum Anjo”, obra que romanceia com fina ironia a ida de um transmontano, o morgado de Agra de Freimas, para o parlamento. 

Calisto Eloy de Silo e Benevides de Barbuda era rude e provinciano nas vestes mas puro nos sentimentos e na alma, um ingénuo e generoso defensor de valores que sentia como maiores. Um anjo, então! Leitor contumaz dos “clássicos”, profundo conhecedor da língua latina e grega, Miguelista, acérrimo defensor dos costumes, da rígida moral católica e avesso ao progresso, o morgado inclusive casa - não por amor, claro está - com a prima Teodora, uma mulher de elevadas qualidades morais, ainda que pouco adornada por algo mais do que as virtudes da alma.

Chegado à capital, o morgado mergulha com orgulho numa cruzada messiânica e quixotesca contra os costumes corrompidos, os “modernismos civilizadores”, fazendo da moral programa político, convencido de que lhe estava destinado salvar a pátria lusa recuperando a moral lisboeta. Percorridas algumas páginas e diversos anos na narrativa, Camilo oferece-nos um Calisto polido, mundanizado com a vida lisboeta, elegantemente vestido, fumando charutos e acompanhado por uma bela e elegante amante, pavoneando-se nos teatros da capital. Até de partido mudara: tornara-se deputado do governo, traindo todos os princípios que outrora defendera. 

Na convivência com um Mefistófeles que, com diversas tentações, lhe vai polindo a ingenuidade e salpicando a pureza, ao longo do romance assistimos à transformação do transmontano hirto, seco, inflexível, que desdenhava da dimensão material e terrena da vida, embevecido com a beleza de grandes e abstratas teorias, num homem materialista que, sem a muleta do programa moral, no qual já não acredita, se torna politicamente vazio. O anjo cai e fica “simplesmente o homem, homem como quase todos os outros, e com mais algumas vantagens que o comum dos homens”. Vem-me à cabeça aquela frase de Pascal: “A grandeza do homem vem de saber que é miserável.”

Este é um livro sobre a fragilidade e imperfeição da vida humana, mas também sobre a ingenuidade de querer fazer da política um mero espaço de afirmação de valores morais. Camilo sinaliza-nos subtilmente que a política corrompe o homem, não sendo passível de reforma pela mera proclamação impoluta e messiânica dos valores morais. Calisto confunde aquilo que é a dimensão privada com a imposição de uma suposta moral pública, caindo em profunda contradição. A crítica de Camilo é tão ampla quanto atual. Recomendo a sua leitura aos mais jovens e emergentes “Calistos” que, no entusiasmo e deslumbramento próprios da idade, andam um pouco por aí a cantar a salvação da pátria, recuperando ideários políticos caducos cuja única bandeira assenta num discurso de base moral. Não vá dar-se a circunstância de os encontrarmos por aí a passear generosos decotes.

sábado, 10 de setembro de 2016

recordação

(...)

- "Brigado. No começo foi complicado, agora tô me acostumando. Mas sabe que que é mais difícil? Não ter foto dela." 
- "Cê não tem nenhuma?"
- "Não, tenho foto, sim, eu até fiz um album, mas não tem foto dela fazendo as coisas dela, entendeu? Tipo: tem ela no casamento da nossa mais velha, toda arrumada. Mas ela não era daquele jeito, com penteado, com vestido. Sabe o jeito que eu mais lembro dela? De avental. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa, festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha, ela tirava correndo o avental, ia arrumar o cabelo, até ficar de um jeito que não era ela. Tenho pensado muito nisso aí, das fotos, falo com os passageiros e tal  e descobri que é assim, é do ser humano mesmo. A pessoa, olha só, a pessoa trabalha todo o dia numa firma, vamos dizer, todo o dia ela vai lá e nunca tira uma foto da portaria, do bebedor, do banheiro, desses lugares que ela fica o tempo inteiro. Aí, num fim de semana ela vai pra uma praia qualquer, leva a câmera, o celular e tchuf, tchuf, tchuf. Não faz sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são, não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da minha esposa no sofá, assistindo novela, mas tem uma dela no jet ski do meu cunhado, lá na represa de Guarapiranga. Entro aqui na Joaquim?"
- "Isso."
- "Ano passado me deu uma agonia, uma saudade, e peguei o álbum, só tinha aqueles retratos de casório, viagem, do jet ski, sabe o que eu fiz? Fui pra Santos. Sei lá, quis voltar naquele bar onde a gente se conheceu"
- "E aí?!"
- "Aí que o bar tinha fechado em 94, mas o proprietário, um senhor de idade, ainda morava no imóvel. EU expliquei a minha história, ele falou: 'Entra'. Foi lá num armário, trouxe uma caixa de sapatos e disse: 'é tudo foto do bar, pode escolher um, leva de recordação'"

Paramos num farol. Ele tirou a carteira do bolso, pegou a foto e me deu: "Olha a data aí no cantinho, embaixo."

- "Primeiro de junho de 1988?"
- "Pois é. Quando eu peguei essa foto e vi a data, nem acreditei, corri o olho pelas mesas, vendo se achava nós aí no meio, mas não. Todo dia eu olho essa foto e fico danado, pensando: será que a gente ainda vai chegar ou será que a gente se foi embora? Vou morrer com essa dúvida. De qualquer forma, taí o testemunho: foi nesse lugar, nesse dia, tá fazendo vinte e cinco anos hoje, hoje, rapaz. Ali do lado da banca, tá bom pra você?"

António Prata, "Recordação", Meio Intelectual, Meio de Esquerda, p. 13.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

a solidão segundo Hopper



New York Office (1962)



Eleven A.M. (1926)



Automat, (1927)



Summertime Interior (1909)



Compartment C, Car 193 (1938)


Lady Reading Book Hotel Room (1931)

Jornal i#76 - iSocialismo

Esta semana, para o i:

Em entrevista ao “Expresso” no último fim de semana, a deputada do Bloco de Esquerda (BE) Mariana Mortágua, veio anunciar-nos aquilo que já todos sabíamos, que este “não é um governo de esquerda”. Jerónimo de Sousa, na festa do Avante, concorda. 

De facto, é cada vez mais difícil perceber, afinal, o que é isso do socialismo. É certo que não falta no PS e no BE quem pratique um discurso inflamado de um socialismo impoluto: que a prática governativa diariamente corrompe. Depois de uns meses de namoro ao PCP, feitos à base de presentes caros (pagos pelos contribuintes, sobretudo as famílias da classe média), como a reposição dos salários na função pública e as reversões nas privatizações, o PS foi aplicando com mestria uma série de medidas que as embevecidas noivas à esquerda, ainda inebriadas com o glamour do devoto consorte, fingem não ver. Socialismos à parte, a Geringonça tem vindo a construir toda uma nova semântica ao que pensaríamos ser o conceito indeterminado a que os políticos dão o nome de “justiça social”, essa musa inspiradora supostamente património absoluto da esquerda.

A política portuguesa percorre mares nunca antes navegados. Vivemos os tempos do iSocialismo. Quantos de nós pensariam ser possível assistir, num só ano, e sem protestos do PCP e do BE, à aplicação de medidas que poderiam ter sido emanadas de uma deliberação do FMI? Senão vejamos: na avaliação de imóveis para efeitos de IMI, o sol passou a pesar mais, por elementares razões de ... “justiça social”.

Na luta contra a pobreza, a Troika da Geringonça, dá menos aos mais pobres como foi o caso dos aumentos das pensões inferiores a 628€, no final do ano passado; o PS propôs ainda um aumento de 0,60 cêntimos para pensões de 200€ e de quase 2 € para as pensões de 628€. Este é o governo que implementou cortes que não foram necessários nem nos anos mais duros de austeridade, como foi o caso do Imposto Único de Circulação para pessoas com deficiência acima dos 60%. “Afinal não deu golpe”, e o nosso governo de imediato declarou estar disponível para trabalhar com o Presidente Temer.

No caso do BANIF, foi surpreendente a rapidez não hesitante e a submissão com que o Executivo assinou, em nome dos portugueses, um cheque de milhares de milhões, que ajudaram a rechear os cofres dessa instituição caritativa-não-capitalista que dá pelo nome de Banco Santander. Mas a cereja no topo do bolo foi colocada na CGD: um novo Conselho de Administração – ironicamente, totalmente composto por homens, com pedigree no grande capital financeiro – apresentou um plano de reestruturação que prevê despedir (!) milhares de trabalhadores, e que já mereceu criticas da Comissão de Trabalhadores do banco público. Sim, estamos a falar de um ... “downsizing”, que faria corar Marx de vergonha. Pelo caminho, e a propósito do IMI, ainda tivemos a oportunidade de ver o PCP defender, qual latifundiário, a sua propriedade privada, acumulada com suor e lágrimas, num discurso de meritocracia a fazer lembrar o Uncle Sam e o “American Dream”. 

Antes assim, socialistas sem socialismo. Para experiências falhadas de socialismo real, já nos bastam os relatos e imagens que nos chegam da Venezuela.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

lembro-me como se fosse hoje





Tinha acabado de chegar. O meu Pai ia a conduzir e a minha Mãe sentada no lugar ao lado, com o cabelo loiríssimo, enfim, com cabelo, a relatar a nossa viagem e todas as peripécias. Calado, aparentemente a ouvir todo o relato, de repente, num gesto brusco, o meu Pai aumenta o volume do som, arregala os olhos, fixa-me no retrovisor e pergunta: "Graçola, já conheces isto?". Mal sabia eu que "isto" era só o Frank. Mal sabia o Mundo que ainda havia de vir o Back to Black, para encher de cintilações o ar escuro das nossas vidas.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

declaração



If I was the Sun way up there
I'd go with love most everywhere
I'll be the moon when the sun goes down
Just to let you know that I'm still around.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Jornal i #75 - A privacidade em perigo

Esta semana, para o i:

A privacidade, enquanto ideia, valor ou direito, está em perigo. O Estado social, para funcionar, interfere cada vez mais na vida dos cidadãos em busca de informação, em nome do cumprimento eficaz das suas funções. Mas a tendência intrusiva é acompanhada por algumas empresas do setor privado (como o Facebook, por exemplo) que, como ficámos a saber depois das revelações de Edward Snowden em 2013, assumiram a tarefa de espiar a vida das pessoas, as suas deslocações, as suas preferências pessoais e suas comunicações. Mesmo aplicações insuspeitas como o Pokémon GO têm sido discutidas por força do tipo de informação que recolhem sobre o utilizador e que se traduz num poder significativo a quem a ela aceda, vulnerabilizando a posição do jogador.

Em Portugal, o governo tem supinamente embarcado nesta tendência destrutiva de uma conquista civilizacional e democrática com mais de 200 anos, menosprezando a rigorosa proteção que os dados pessoais merecem, sobretudo à luz dos desenvolvimentos ao nível da União Europeia que culminaram com a aprovação, há alguns meses, de um pacote legislativo amplamente discutido e com um impacto económico ainda desprezado em Portugal.

No início de agosto, aproveitando a anestesia e o entorpecimento mental das férias, os consulados passaram a facultar dados pessoais dos emigrantes a terceiros. A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) manifestou-se contra. Alguns dias depois, o governo pretendia facilitar o acesso e o controlo da Autoridade Tributária a dados pessoais de natureza sensível: o número da conta, o saldo e o valor anual final existente em dado momento. Esta ingerência, por muito que se procure fundamentar com o combate à corrupção e à perseguição dos mais ricos, é excessiva por autorizar de forma generalizada o acesso a dados pessoais sensíveis de todos os portugueses, sem qualquer diferenciação, limitação ou exceção em função do objetivo prosseguido. O que o governo pretendia era implementar uma vigilância generalizada e em larga escala que, como a CNPD conclui, é desproporcional e inconstitucional. 

Aparentemente inocente, o acesso por parte do Estado a dados pessoais permite uma forma de monitorização ou de vigilância, designada por Roger Clarke como “dataveillance”, que consiste na observação não através de uns binóculos ou de uma câmara, mas através da recolha de factos e dados da vida dos cidadãos. Ainda que menos imediatos e talvez mais abstratos, os perigos para a liberdade individual e até para o livre desenvolvimento da personalidade não são muito distintos dos profetizados por Orwell ou por Bentham.