domingo, 31 de dezembro de 2017

a perda do que poderia ter sido

"Blaine precisava do que ela não era capaz de dar e ela precisava do que ele não era capaz de dar e assim ela sofria por isso, pela perda do que poderia ter sido".


americanah, Chisnada Ngozi Adichie, p. 19

domingo, 10 de setembro de 2017

cuidar

"Os maridos tentavam ajudar dando respostas, sendo lógicos, aplicando uma força casmurra como se de uma pistola de cola se tratasse. Ou então não tentavam ajudar de todo, pois estavam noutro sítio completamente diferente, a avançar sozinhos pelo mundo. Mas as mulheres, oh, as mulheres, quando não estavam amarguradas ou melancólicas ou a contar as contas dos seus ábacos de desapontamento, cuidavam dos maridos com uma facilidade delicada e desprovida de esforço".

Meg Wolitzer, A Mulher, p. 39,

domingo, 3 de setembro de 2017

chegar mais cedo a casa

sei que estou a chegar à minha terra quando, numa das paragens de comboio, oiço o seguinte cumprimento entre duas senhoras: "atão Tia Silvina? Como está de saúdinha?" [com a melodia beirã a que o online nunca fará jus]

terça-feira, 29 de agosto de 2017

último texto para o jornal "i"

Ao fim de quase 3 anos de colaboração com o "i" aqui fica o meu último texto. Agradeço ao "i" e desejo os maiores sucessos a toda a sua equipa. A decisão foi exclusivamente minha para que me possa concentrar e dedicar a outros projetos pessoais e profissionais, designadamente estudar alguns aspetos do tema de que falo neste texto:


    Na semana passada, num artigo neste jornal do dia 27, o deputado Sérgio Azevedo (SA) escrevia sobre o tema dos metadados, designadamente o diploma que permite aos serviços de informação o tratamento daquele tipo de dados. Sem prejuízo de concordar com a exposição de SA sobre o conceito de segurança depois do 9/11, discordo da sua posição em dois aspetos: a definição apresentada de metadados e a leitura da posição do Tribunal Constitucional (TC) exposta no Acórdão 403/2015.
    SA explica que o legislador sempre se preocupou em proibir os “serviços de informação praticarem atos de competência exclusiva dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias”. Os serviços de informação não participam, como o autor refere, na investigação e processo criminal, limitando-se a produzir informações, “numa antecipação da tutela proliferada pelo direito penal”. Essas informações constituem “um instrumento da investigação criminal”. Estou de acordo com esta leitura, que me parece ser também a do TC. O problema principal no seu texto é a lisura com que define metadados, resumindo-os a “detalhes de segurança, informação de domínios ou tags XML”. Não é de estranhar esta definição simplificada, que também encontramos na argumentação astuciosa de alguns Estados (como os EUA) determinados a persuadir os mais céticos de que a recolha de metadados não é grave por não incidir sobre os conteúdos de comunicações. Sucede que não é tão claro que assim seja: os metadados são todos os dados relativos a uma comunicação em curso, com exceção do conteúdo da conversa. Podem incluir o número de telefone, o endereço de IP de quem realiza a chamada ou envia um email, informação temporal e espacial, o remetente, o destinatário. Os riscos derivados do tratamento deste tipo de dados não se encontra nesse ato em si mesmo, mas na sua análise e, sobretudo, na informação pessoal que resulta dali. A agregação e análise de metadados são fáceis em virtude do seu carater estruturado e certas ferramentas informáticas permitem o tratamento de grandes conjuntos de metadados com o objetivo de determinar relações e padrões integrados, nomeadamente dados, hábitos e comportamentos pessoais. Como referiu o Tribunal de Justiça da UE, num caso de 2014, (“Digital Rights”) “os dados [das telecomunicações], como um todo, podem permitir o estabelecimento de conclusões muito exatas relativamente às vidas privadas das pessoas”.
    Por fim, a interpretação do autor sobre a posição do TC parece-me incompleta. Para o TC, por força do art. 34.º, n.º 4 da nossa Constituição, vigora uma proibição absoluta de ingerência das autoridades públicas nos meios de comunicação, incluindo em matéria de dados de tráfego. A única exceção ali prevista verifica-se no âmbito de um “processo criminal”. Ora, como o autor reconheceu, os serviços de informação atuam numa fase prévia a este momento, não são intervenientes nesse processo, pelo que não podem, por força daquele artigo, intrometer-se nas comunicações, nem aceder aos metadados dos portugueses. Ou seja, o acesso aos metadados é um ato que não se inclui no âmbito de investigação criminal.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

passar à pergunta seguinte

"Já era quase de noite e estava muito mais frio. Via as linhas recortadas do pico do Mont Blanc, os seus pináculos e fendas recheadas de neve. Um monte enorme, escuro e presente, mas nada como uma presença humana. Era um monolítico de dúvida.
   Pode-se pensar e repensar uma pergunta, o objetivo da espera, a questão de saver se há um objetivo, se vai aparecer uma pessoa, mas se a pessoa não vem, não há ninguém nem nada que responda.
   É noite. Ouço um pequeno grupo de homens chamarem-se uns aos outros em alemão, vejo-os a passar, os pompons dos barretes de esqui a abanar, a neve fresca a ranger sob as suas botas.
   Foram-se embora. O vento assobia no meio das árvores, os ramos flutuam para cima e para baixo com uma elegância lenta, selvagem.
   Estou sozinha na base da pista, quase gelada para me mexer.
   A resposta não chega.
   Tenho de encontrar um ponto arbitrário dentro do período de esperam a ausência em aberto, e arrancar-me dali.
   Partir, sem resposta. Passar à pergunta seguinte."


Rachel Kushner, Os Lança-Chamas, p. 357

Hey, are you even paying attention to me right now?

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Atlanta





Atlanta (2016- ), Donald Glover

Não posso dizer que seja a herdeira do trono legado por The Wire. Não posso dizer que seja uma continuação de How to Make it in America. Mas é um meio termo entre os dois.

domingo, 16 de julho de 2017

domingo, 25 de junho de 2017

ser mulher

"Andar por aí, sendo mulher, é ter a noção, não apenas do preconceito, mas de que somos um corpo exposto a mais perigos. Ainda é assim."

Viagem ao sonho americano, Isabel Lucas, p. 54.

sábado, 3 de junho de 2017

uma selfie difusa



Algures em NYC, em Outubro do ano passado.

15 anos





é como ver o último episódio dos Sopranos: um tremor na espinha e um eriçar de pelos nos braços.

ao telefone

o Sr. Professor dizia assim: "sabe, é aquela velha questão de Dworkin..."

Não consegui ouvir o que disse depois porque, sou sincera, todo aquele momento e, sobretudo, o teor daquela conversa, me deu cabo dos sentidos. Mas, em boa verdade, não interessa muito e, se o Sr. Professor me permite, até discordo: são tantas as "velhas questões de Dworkin". 

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Jornal i #107 - De "Black Mirror" à "baleia azul"

Esta semana, para o i,


Nos últimos dias a comunicação social deu nota de um novo pânico social que, vindo ao que parece da Rússia, tem vindo a trilhar caminho pela Europa tendo chegado já ao Brasil: o jogo da “baleia azul”. Tudo começa (where else?) no Facebook ou no WhatsApp, numa troca de mensagens com um “curador”, que desencadeia uma sequência de desafios lançados diariamente para instigar os jogadores - maioritariamente adolescentes - à automutilação e, na fase final, a cometer suicídio. Ainda não há nenhum caso confirmado de suicídio, mas as forças policiais de vários países estão já a investigar algumas suspeitas e os alertas nas redes sociais feitos pelas autoridades multiplicam-se. O que é verdadeiramente extraordinário neste jogo é o controlo à distância, a obediência cega e religiosa, aos comandos de uma autoridade desconhecida, sem rosto, digital, que, intermediada pela tecnologia, assume o controlo mental (e real) da vida dos jogadores.

O “i” noticiava que o filme “Nerve” teria inspirado a “baleia azul”, mas o pior resultado desta forma de manipulação da vida real foi filmado por Charles Brooker no episódio “Shut up and Dance”, da série “Black Mirror”. Trata-se de uma verdadeira master class sobre a perda de controlo das nossas vidas que nasce de um cruzamento trágico entre a tecnologia e os segredos e as fraquezas humanas. A personagem principal é um jovem (Kenny) que, trabalha e estuda; não lhe conhecemos malícia nem comportamentos reprováveis; certo dia, inadvertidamente, a irmã descarrega malware para o seu computador. Kenny não sabe mas, do “outro lado”, alguém o espia recolhendo imagens na câmara do seu portátil enquanto o jovem se masturba. Imediatamente depois, recebe um email com uma ameaça de chantagem: o filme será enviado à mãe, amigos e colegas de trabalho, a menos que Kenny cumpra uma série de instruções. Ao longo do episódio vamos conhecendo casos semelhantes, entre eles o de um indivíduo, casado e com filhos, que visita com frequência sites de pornografia infantil. Procurando puni-las pelos seus segredos e fraquezas confessados, inadvertidamente, diante de um ecrã, um hacker chantageia os vigiados, enviando-lhe instruções por mensagens e emails e incitando-os a cometer crimes, como o assalto a um banco ou o homicídio. O último desafio é lutar até à morte com outra vítima, enquanto um drone filma a cena.

A identidade do hacker nunca é conhecida e, ao que parece, esta dark force é metaforicamente a tecnologia em si mesma, transformada num enorme motor de vingança e de justiça vigilante para punir os pecadores entre nós. Mas, tal como acontece noutros episódios, a tecnologia não é a origem da ruína humana, são os próprios, as suas ações e comportamentos e, sobretudo, uma aceitação acrítica, irrefletida e irresponsável (uns dirão desinformada) das circunstâncias e das consequências da utilização da tecnologia, seja um computador, seja um telemóvel. Alguns leitores saberão que o fundador do Facebook utiliza uma mola para tapar a câmara do seu computador, como saberão também que a CIA é capaz de entrar nas nossas “smart TV’s”, “mas será mesmo assim?”, perguntam os mais incautos. Quanto a estes, o mesmo ceticismo e a mesma dúvida terão despertado aquando do relato desta notícia, mas ela é a prova de que é cada vez mais realista e menos fantasioso um tema há muito tratado pelos neoludistas: o receio de vigilância, de controlo (individual ou social) e de punição, seja pelo Estado seja por terceiros, intermediado pela tecnologia, da qual cada vez mais dependemos.

Jornal i #106 - O BE e a Venezuela: uma evolução a elogiar?

O texto da semana passada para o i,

Há uma certa esquerda cuja suposta superioridade moral deriva muito mais das palavras do que dos atos, razão pela qual sempre teve dificuldade em lidar com a realidade e com a natureza das coisas – sobretudo quando estas contrariam as narrativas oficiais que justificam o progresso social nos regimes socialista. O caso da Venezuela é, talvez, o mais recente exemplo. Em 2013, aquando da morte de Hugo Chávez, a Venezuela surgia na boca do Partido de Esquerda Europeia como um exemplo da democracia para a Europa: “enquanto que na Europa a democracia está a falhar, na Venezuela a democracia participativa tornou-se num sinal de identidade”, diziam-nos.

Hoje, em face do caos que as televisões portuguesas começam a reportar, estranha-se que por cá nunca tenhamos assistido à promoção das figuras venezuelanas ao estilo “Luaty Beirão”, reflexos dos espasmos esquerdistas de revolta. Nem a detenção, em 2014, do líder da oposição, foi suficiente para preencher os exigentes critérios do BE. Leopoldo Lopéz parece não preencher os mínimos olímpicos das cartilha revolucionária para suscitar indignações à esquerda. Tão pouco terá tido heroicidade suficiente para ter espaço mediático, uma vez que não lhe foi dada a oportunidade de aparecer nas televisões portuguesas a dar explicações e entrevistas sobre os contornos do regime Venezuela.

Na narrativa do BE, Lopéz, até à sua prisão, era apenas o líder de uma fação da oposição Venezuelana, ligada aos EUA, que apostava num golpe de Estado lento, segundo as técnicas do manual de Gene Sharp. Afinal, a Venezuela chavista, cobiçada pelas suas reservas petrolíferas, sempre fora alvo de tentativas externas de desestabilização e de campanhas mediáticas hostis. Para o “esquerda.net”, em 2014, a democracia venezuelana estava ameaçada “pelos golpistas de sempres”. Um ano mais tarde o Pravda bloquista, não fossemos ser intoxicados pela propaganda ocidental, explicava-nos que “os principais meios de comunicação norte americanos, espanhóis, e os da direita latino-americana, trabalhavam arduamente para marcar a agenda informativa sobre a Venezuela com o objetivo de sedimentar a ideia de que estávamos perante um “Estado falido””.

Vergado pela brutal realidade dos factos que nos têm chegado a casa todos os dias, felizmente, o BE começa a aproximar-se timidamente das visões outrora sedimentadas pelos imperialistas e pela direita. Não poderia ser de outra forma, aliás, num partido que agora se senta no lugar do arco do poder e que, progressivamente, se tem vindo a institucionalizar como partido do sistema. O volte-face bloquista manifestou-se em maio de 2016, numa opinião no JN de uma deputada do BE onde, num texto recheado de vacuidades, procurava estabelecer as diferenças entre a Venezuela e Angola, a propósito – como não podia deixar de ser – do “caso Luaty Beirão”. Timidamente, a deputada Mortágua admitia “erros” na democracia da Venezuela, que se havia degradado, sem, contudo, nos precisar quais. Ficamos sem saber se os “erros” a que o BE se refere dizem respeito aos portugueses perseguidos na Venezuela - muitos deles espoliados dos seus pequenos negócios, nacionalizados ou até roubados à força de milícias populares por ordem do regime -, aos jornalistas que não conseguem exercer a sua função, ao Parlamento que viu suspensos os seus poderes por decisão Presidencial ou à incapacidade de realizar eleições, perante um Maduro que pretende pela via constitucional manter-se indefinidamente no Poder. A pergunta que o BE também não nos responde é: porque razão o nosso Parlamento só serve para montar o folclore de alguns, em vez de defender, como se impõe, a liberdade e os direitos de todos os nossos cidadãos no exterior?

Tentando fugir entre os pingos da chuva, a semana passada assistimos, sem que isso tenha sido dissecado na nossa imprensa, à capitulação silenciosa do BE, que cinicamente confirmou o voto de “condenação e preocupação”, no Parlamento, da situação que se vive na Venezuela, deixando o PCP, que votou contra, numa posição vergonhosa e isolada. Se o voto no Parlamento esteve finalmente do lado certo, alguns corações bloquistas continuam a bater do lado errado: em Paris, a eurodeputada Marisa Matias não hesitou em “grandolar” lado a lado e a pedido do candidato francês, Jean-Luc Mélenchon, derrotado na primeira volta das eleições presidenciais, que persiste em afirmar que o único problema da Venezuela é a queda do preço do petróleo e que propõe a adesão francesa à Aliança Bolivariana, à qual pertence o regime de Maduro. O tempo nos dirá se o voto do BE foi consistente ou se, como diz o ditado, até um relógio parado nos dá a hora certa duas vezes ao dia.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

ouvido durante as cerimónias do 25 de abril, em Viseu

“…Olhem sempre em frente, olhem o sol, não tenham medo de errar, sendo originais, iconoclastas e anti, o mais anti que puderem, e verdadeiros, fugindo aos velhos caminhos trilhados de pé posto e a todas as conjuras dos velhos do restelo. Cultivem a inquietação como fonte de renovamento. E enquanto vivemos, façamos de conta que trabalhamos para a eternidade e que tudo o que é produção do nosso espirito fica gravado em bronze para juízes implicáveis julgarem a sua hora”.

é do Aquilino, sim. 

quinta-feira, 20 de abril de 2017

todas as primeiras mulheres são loucas

- Há uma coisa que não consigo entender - disse-lhe uma vez, nos primeiros tempos do nosso próprio casamento. Porque foi que casaste com a Carol, afinal?
- Porque era o que se fazia - respondeu ele
O problema era que - ou, pelo menos, seria esse o problema que Joe determinaria - Carol era louca. Passível de ser internada num manicómio e tudo, uma lunática a sério. Pode dizer-se isto acerca da primeira mulher de qualquer homem e os outros presentes acenarão vigorosamente com a cabeça; compreendem perfeitamente o que está a ser dito. Todas as primeiras mulheres são loucas - a ponto de serem violentas e de revirarem os olhos. Contorcem-se, gemem, desatam a arder e desfazem-se, decompõem-se diante dos nossos próprios olhos. 

A Mulher, Meg Wolitzer, p. 22.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Jornal i# 105 - A oportunidade perdida do governo português

Ontem, para o i,

Durante a campanha para as legislativas, apontando várias vezes os desequilíbrios e assimetrias de poder na Europa, exaltando o imperativo de refundar o projeto europeu, o PS propôs-se defender os interesses portugueses com uma voz mais grossa, em Bruxelas, prometendo também, caso vencesse as eleições, uma menor submissão portuguesa na Europa.

Também o programa socialista, em particular o Capítulo III, prometia “novos impulsos”, “reequilíbrios económicos e sociais”, correção de “assimetrias”, etc. E eis que, aquela que era apenas uma promessa eleitoral de uma esquerda cheia de brio pela pátria, finalmente se materializa: diante de câmaras e flashs, o governo fez-se representar por um secretário de Estado que, a transbordar de testosterona política, enche o peito de furor patriótico para manifestar a tal voz grossa portuguesa ao ministro das finanças holandês - “aquele-cujo-nome-não-se-pronuncia” - na sequência de uma polémica já muito glosada.

Mas a oportunidade socialista de liderar os destinos europeus, refundar as políticas financeiras do Eurogrupo e pôr na ordem os países do Norte, não se esgotou neste momento televisivo de glamour para consumo interno: o ministro das Finanças português era então sondado para substituir aquele que tem sido tratado, de forma bastante grosseira, como o Lord Voldemort das finanças europeias.

As condições pareciam estar a ser criadas para que Centeno fizesse valer a posição socialista, para partilhar a fórmula mágica que tem vindo a implementar em Portugal, para reverter o “fanatismo ideológico” e austeritário e defender, na Europa, uma política menos penalizadora da economia e do tecido social. Enfim, para liderar o programa de “reformas estruturais” diferentes que se propôs aquando da campanha.

É por isso surpreendente que o PS não queira aproveitar esta oportunidade argumentando que a liderança do Eurogrupo não está nas prioridades do governo. Pelo contrário, dessa cartilha de prioridades parece estar o apoio ao ministro das Finanças espanhol, Luís de Guindos que, em 2013, em entrevista ao “Financial Times” enaltecia a qualidade das políticas implementadas na Zona Euro. Este apoio a Guindos, um defensor da austeridade nos anos de crise e das políticas adotadas pela Europa, o ministro que implementou cortes substanciais na despesa espanhola para reduzir o défice, amplamente criticado pela esquerda espanhola, indicia que o PS ultrapassou o espasmo patriótico e ocasional de outrora, deixando escapar a oportunidade de demonstrar e de dinamizar, ao nível europeu, a ‘alternativa’ à austeridade que tem vindo a implementar por cá.

o momento alto da minha semana






Veep, 6ª temporada, episódio 1

terça-feira, 18 de abril de 2017

Jornal i# 104 - A Plea for Caution in Russia

A semana passada, para o i,

“Devemos ficar longe da Síria”, escreveu Trump no Twitter em 2013, como reação à decisão do presidente Obama de apoiar diretamente os rebeldes sírios na sequência de um ataque com armas químicas por parte do governo do país.

Nos anos seguintes, e mesmo durante a sua campanha presidencial, Trump foi sempre claro e assertivo na defesa de uma linha não intervencionista face ao conflito da Síria. 

Sobre a China, durante vários anos, o atual presidente americano desenvolveu uma retórica de denúncia do que ele considera ser a posição agressiva da potência asiática no comércio internacional, levantando suspeitas – factualmente exageradas – sobre a forma como supostamente o Estado chinês promove a manipulação da moeda e um significativo défice comercial com os EUA que ele quererá, supostamente, ver ultrapassado.

Mas a pressão sobre a China não se esgota nas questões comerciais. Dias antes do encontro com o seu homólogo chinês, Xi Jinping, Trump foi claro: “Se a China não resolver os problemas provocados pela Coreia do Norte, então os EUA irão resolvê-los sozinhos.”

Nenhuma destas declarações afastou Xi Jinping, que marcou presença, não em Washington DC, mas em Mar-a-Lago, o clube privado, pertença da família Trump, situado em Palm Beach, na Florida, nem inibiu uma intervenção norte-americana na Síria, com uma série de bombardeamentos que surpreenderam o mundo – incluindo a Rússia, que nos últimos anos, perante as indecisões de Obama, foi assumindo um papel hegemónico na região, não apenas na Síria, mas também, recentemente, na Líbia. Na verdade, existem rumores de que a Rússia poderá estar a apoiar o denominado governo da Câmara de Representantes da Líbia, liderado por Khalifa Haftar, que domina a zona leste do país e que nas últimas semanas foi bem-sucedido na tomada de Ras Lanuf, Sidra e Ben Jawad, áreas ricas em petróleo.

Os ataques na Líbia surgem numa altura em que Putin enfrenta uma elevada contestação interna. Numa altura em que a Rússia vive o terceiro ano de uma grave recessão económica, os protestos agudizam-se. No passado dia 26 de março, a polícia russa deteve mais de 700 manifestantes que participavam num protesto contra a corrupção no país e que juntou milhares de pessoas no centro de Moscovo. Apesar da tentativa de minimizar o impacto mediático das manifestações, elas têm tido significativa repercussão, em especial porque um dos principais alvos será o primeiro-ministro, Medvedev, acusado de deter uma significativa fortuna secreta. 

A dúvida que paira hoje é se as decisões de Trump são motivadas por um espírito incoerente e impulsivo ou se, pelo contrário, a sua imprevisibilidade resulta de uma forte capacidade de ler a realidade e de uma significativa adesão à Realpolitik. Certo é que, na mesma semana, e ignorando o lado folclórico das declarações inflamadas com que inunda o Twitter, Trump beneficiou dos sorrisos do presidente da China e mostrou ao mundo que não se deixa limitar pelas aspirações russas que, perante a evidência dos ataques americanos, ficaram sem qualquer reação. Ficamos a saber, em qualquer caso, que longe vão os tempos em que a política americana em relação à Síria era definida por Vladimir Putin, como ocorreu em 11 de setembro de 2013, quando este escreveu a famosa crónica “A Plea for Caution From Russia”, explicando com pormenor porque entendia não ser do interesse americano uma intervenção na Síria.

Jornal i# 103 - A institucionalização da felicidade

Há duas semanas, para o i,

Há duas semanas, o governo criou o site da felicidade a propósito da comemoração do Dia Internacional da Felicidade. E eu que julgava que se há coisa que não se “internacionaliza” por decreto, que não se comemora de forma circunscrita no tempo e no espaço, é a felicidade. 

Atenção, caro leitor: não se trata do site felizes.pt, uma página, que não merece o patrocínio do Estado, usada para combinar encontros – e cito – “com maturidade”. De facto, a iniciativa do nosso governo pretendeu assinalar aquele dia e permitir que os portugueses partilhassem com o mundo as suas “experiências de bem--estar” e “celebrar a felicidade”.

Naquela data, decretada pela ONU na sequência de proposta do próspero reino do Butão, a submissa pátria lusa esqueceu todos os infortúnios e problemas do dia-a- -dia; naquela data, a tristeza era uma anormalidade e o fracasso, por 24 horas, seria erradicado do nosso país com o aval socialista: os portugueses tinham o dever de ser felizes! Bastava um vídeo ou uma foto que o governo se encarregava de promover e propagandear a felicidade dos súbditos do reinado da geringonça. A nossa esquerda parece, apesar de tudo, ser mais comedida do que, por exemplo, a esquerda venezuelana que, em 2013, criou o Ministério da Suprema Felicidade Social do Povo Venezuelano para garantir a felicidade de todos os venezuelanos através de uma fórmula aplicada ao coletivo. Conhecemos bem o resultado dessa formula “mágica”.
Não sendo possível comparar a situação política, económica e social dos dois países, certo é que a partilha de valores e de uma ideologia à esquerda se reflete neste tipo de iniciativas governamentais que, se por um lado distraem o povo, falsificam e maquilham a realidade nacional dos dois países, por outro comungam do mesmo fim: a intenção de oficializar ou institucionalizar aquilo que é vivido de uma forma individual por cada um de nós, à medida que vamos construindo a nossa história, sem interferência e sem publicidade do Estado. A felicidade, se existir, não é vivida em conjunto nem precisa de intermediações. Sobretudo quando estas são artificiais. 

Mas, por cá, o artifício não durou muito. É que em dia de felicidade, pouco depois de anunciada esta bela iniciativa governamental, é publicado, também pela ONU, o relatório mundial sobre a felicidade em 2017. Ao que parece, por muito que o Estado ambicione intermediar a felicidade dos seus, não tem sido bem- -sucedido no caso português: dos 155 países analisados, Portugal ocupa o 89.o lugar; com níveis de felicidade acima dos nossos encontram-se, por exemplo, a Venezuela (fruto do persistente trabalho do ministro da Suprema Felicidade em tempos tão convulsivos), o Paquistão, o Kosovo, o Turquemenistão, o Cazaquistão, entre outros; Portugal tem vindo a decrescer neste índice da felicidade e, se em 2013 ocupávamos o 73.o lugar, agora estamos no 89.o; da Europa, Portugal é o país com os índices de felicidades mais baixos e um dos países que mais antidepressivos consome.

sábado, 25 de março de 2017

Jornal i #102 - Neruda: a imoralidade de um comunista burguês

Esta semana para o i,

Está agora nos cinemas portugueses “Neruda”, um filme de Pablo Larraín, o mesmo realizador de “Jackie”. Além de ser um bom e criativo biopic sobre o poeta, senador e comunista chileno, “Neruda” é também uma violenta bofetada no comunismo e, em particular, na tendência para a beatificação dos heróis da causa revolucionária. Basta pensa em Fidel Castro e Che Guevara.

Só que, se, por um lado, “Neruda” não é um filme que enalteça a luta de um herói santificado da causa comunista, por outro lado, também não é um filme sobre a imoralidade e boémia da vida de um poeta. Neruda é, sobretudo, um filme sobre a integridade de um comunista. É que Larraín não retrata apenas cenas da vida boémia de um artista, vaidoso e frívolo, que bebe champanhe e vive uma vida de deboche, de orgia em orgia, ao lado da sua mulher aristocrata, Delia (Mercedes Morán). Ainda assim, esta descrição do artista esquerdista é fundamental na personagem que Larraín nos apresenta: é nos intervalos do deboche que, das trincheiras da sua superioridade intelectual (e moral), Neruda lidera espiritualmente a revolução e os trabalhadores, encantando e inspirando com declamações de poesia sobre o sofrimento do povo, mobilizando as massas através da função simbólica da sua escrita e da sua existência que, naturalmente, se situa num pedestal, acima do comum dos mortais. Como se uma revolução se alimentasse de belas palavras; como se o combate à pobreza e a luta pela justiça social se construíssem sobre lirismos.

Pablo Larraín filma sobretudo a imoralidade e a hipocrisia do comunista burguês que vive segundo o lema “olha para o que eu digo e não olhes para o que eu faço” e apresenta-nos um Neruda senatorial, com todo o estatuto de excecionalidade e sobranceria em relação aos seus camaradas de luta que a palavra “senador” concede, mas que dificilmente se compreende à luz dos axiomas comunistas; um senador cuja consciência convive com a sua altivez de forma tranquila, acomodado e resignado à sua condição moral e artística, superior, mesmo quando confrontado por Silvia, militante desde os 14 anos que, depois de ultrapassar as consternações naturais de quem está na presença de um ídolo, de um deus, acusa Neruda de ser um comunista especial e pergunta: “Quando chegar o comunismo, todos serão iguais a ele ou a mim?” Sem pejo, ligeiramente indignado com a ousadia da camarada, o senador responde que todos serão iguais a si; um senador que, num café parisiense, de peito túrgido, bebendo uma garrafa de bom vinho e rodeado de jornalistas que o questionam com a mesma curiosidade e fascínio que uma fã manifesta junto de uma estrela pop, fala dos homens do seu país que estão presos, que são torturados e exilados. Neruda foi apenas um deles, é certo. Ainda assim, um senador, um poeta, um artista e, naturalmente, um privilegiado. Um hipócrita, portanto.

domingo, 19 de março de 2017

Jornal i #101 - O manifesto de Zuckerberg sobre o futuro da humanidade: um Big Brother de boas intenções

Esta semana para o i,

O número terá já ultrapassado os mil milhões em termos mundiais e, em Portugal, uns 4,7 milhões. Refiro-me, naturalmente, aos utilizadores do Facebook (FB). Apesar deste impressionante sucesso, a invenção de Mark Zuckerberg tem muitos fregueses descontentes que sucessivamente lhe apontam problemas e críticas: uns dizem que explora o narciso em cada um de nós, outros que cria um “enxame”, um conjunto de pessoas que, através da facilidade da comunicação digital, constitui uma praga que opina constantemente e insulta sem qualquer espécie de travão moral para consumo universal. Há ainda quem diga que as redes sociais, e o Facebook em particular, extinguiram o lugar dos agentes mediadores, essenciais numa sociedade democrática, madura e civilizada, e quem discorde da manipulação e censura das opiniões e notícias nos trends e feeds que o algoritmo constrói. Por fim, há também o problema da devassa, da privacidade e da disponibilização das nossas informações pessoais às autoridades estatais.Talvez por esta acumulação de críticas, o jornal inglês “The Guardian” declarou 2016 como o ano em que o FB se tornou um bad guy. 

Mas a esta nobre cartilha de críticas acrescenta-se agora um dado novo: o manifesto publicado por Mark Zuckerberg, em 16 de fevereiro deste ano, na sua página pessoal. Em 5700 palavras, o CEO do FB sintetiza o futuro idílico de uma comunidade mundial transformada pelas redes sociais. Alterações climáticas, terrorismo, guerras, pobreza, desigualdades sociais: Zuckerberg tem um plano que expôs com uma admirável capacidade de síntese (quase 6 mil palavras!), para construir aquele que, na sua perspetiva, parece ser o futuro adequado para todos nós. Naturalmente, este curto texto tem um significado imediato: o reconhecimento de que aquilo que era, até então, uma infraestrutura de comunicação, de abertura e conectividade das pessoas passa a ser, assumidamente, um veículo de transformação e modificação da vida social, tal como a conhecemos, para a criação de uma nova “infraestrutura social” para a “comunidade global”.

Ou seja, Zuckerberg propõe-se mudar o mundo usando o FB. Faz, então, parte do passado a ideia de que a tecnologia nos controla: é Zuckerberg que se assume como o protagonista, o grande líder, desse domínio. Por outro lado, a mensagem de um bilionário que se arroga a pretensão de falar em nome de todos, propondo uma reconstrução da humanidade baseada na sua própria visão, no seu quadro de valores, na sua axiologia, sobre como deve ser o futuro, mais não é do que uma aberração política e democrática disfarçada de declaração de responsabilidade social ou de cartilha de boas intenções. 

Qualquer comparação deste manifesto com o discurso de uma miss Universo é profundamente injusta e, sobretudo, ingénua, pelo que me parece que a mensagem do CEO do Facebook é para levar a sério, com algum espanto e preocupação.

mas Pablo, um comunista, nunca achará





Neruda, Pablo Larrain (2016)

o mesmo erro de sempre

fazer meus os constrangimentos e embaraços das indignações alheias.

quarta-feira, 8 de março de 2017

You ma' king for real





Jornal i #100 - A esquerda já não é o que era (II)

Ontem para o jornal i,

Da sociologia ao direito, há hoje um consenso alargado sobre a importância e a necessidade original de instituições na vida humana e na forma como se organiza essa vida em sociedade.

É a existência de instituições na vida quotidiana, no dia-a-dia, que nos facilita um contexto organizado, uma ordem, direção e, sobretudo, estabilidade. Confiando nesta estabilidade, aos poucos vamos elaborando os nossos planos de vida, os nossos projetos de felicidade. Não é do nada que, num regime democrático, o regular funcionamento das instituições é um pressuposto (até constitucional) da sua sustentabilidade e um sintoma da sua saúde. 
Posto isto, com alguma preocupação ficámos a saber, através de um estudo da DECO, que os portugueses não só não conhecem como não confiam nas instituições nacionais e internacionais que os governam e representam. Esta constatação coloca as instituições do nosso país numa posição particularmente frágil e vulnerável, indesejada numa democracia saudável. Não é de estranhar, dirá imediatamente o leitor. Sendo difícil identificar no tempo e no espaço as raízes deste descontentamento, seguramente que o comportamento menos exemplar de alguns dos órgãos que as constituem é um elemento a incluir na análise e compreensão do fenómeno.

Basta pensar num dos acontecimentos que marcou a vida política nacional na semana passada: a conflituosidade institucional suscitada pelo facto de a presidente do Conselho de Finanças Públicas (CFP), Teodora Cardoso, ter dito que foi quase um milagre o governo ter conseguido um défice de 2,1%. Surpreendeu, desde logo, a participação neste episódio de um Presidente da República sempre tão preocupado em atenuar o “clima de crispação”. O que já não surpreende é o exercício de defesa cega dos resultados do governo do PS, refletido na advertência de um deputado comunista à presidente daquele órgão: “Milagre é Teodora Cardoso ainda ter salário e ocupar o lugar que ocupa.” Recorde-se que, além de uma economista de respeito e que, no caso, está coberta de razão, o Conselho ao qual preside é um órgão independente e autónomo do poder político que tem por função fiscalizar as finanças do Estado. 


Tempos houve em que a esquerda parlamentar, então impoluta e menos comprometida, censurava aqueles que discordavam do conteúdo das decisões de órgãos autónomos e independentes do poder político, como sucedeu com as decisões do Tribunal Constitucional, cuja independência política não é totalmente incontestada, e a sua designação de “tribunal” nem sempre consensualizada. Como reação natural à deslocada referência da presidente do CFP a um “milagre” esperava-se uma discordância dentro dos limites que impõe o respeito institucional e a autonomia do órgão: uma discordância de substância, devidamente fundamentada, e nunca uma espécie de ameaça à pessoa que exerce o cargo ou um ataque à sua competência ancorado na mera discordância entre o PCP e a realidade económica apontada por Teodora Cardoso. Porém, bem vistas as coisas, não é novidade nenhuma o desprezo olímpico do PCP por instituições autónomas de supervisão e controlo do Estado.

Jornal i #99 - Caminho para a servidão

No jornal i da semana passada,

Recentemente, uma ministra escandinava manifestou a sua indignação por Portugal ter aprovado um regime fiscal que isenta reformados do seu país que optem por estabelecer uma residência não habitual em Portugal. Este regime, aprovado pelo governo socialista, em 2009, permite que reformados estrangeiros que sejam tributados noutro país ou tenham a pensão paga por outro Estado, fiquem isentos de pagar IRS, durante dez anos.

Portugal pretendeu com este regime atrair reformados com elevado património líquido, tornando-se num dos destinos de residência preferencial para suecos, franceses, holandeses, britânicos, italianos e suíços. O sol quando nasce supostamente é para todos, pese embora no nosso país nem todos o posam usufruir da mesma maneira: Portugal, que tanto tributa os seus reformados e residentes, criou um verdadeiro offshore para os pensionistas ricos do resto da Europa aqui poderem viver o Outono da vida no quentinho do sol português. Este tratamento desigual só indigna políticos suecos, já que por cá este tipo de discriminação é politicamente aceitável, porque beneficia o Estado português e alguns negócios instalados, apesar da profunda iniquidade existente entre pobres e ricos, residentes e estrangeiros. 

Nos últimos dias o país político e mediático acordou com indignação, porque terá havido uma falha na publicação das estatísticas de transferências para offshores. Não sabemos ainda se essas transferências configuram ou não evasão fiscal, e se a falta de publicação das estatísticas interfere ou não com os deveres de investigação da Autoridade Tributária. O simples facto de haver residentes que possam ter colocado, legal ou ilegalmente, dinheiros seus, fora do país, é motivo de indignação, porque, lê-se, poderão não estar a participar do esforço austeritário que o Estado português impôs – sem que se diga que tal é resultado de anos do seu próprio devaneio.

As forças políticas que no Parlamento que de forma estridente pedem cabeças pela ausência de publicação de uma informação estatística que durante anos ninguém deu pela sua falta, são as mesmas que impedem que se investiguem os inúmeros desvarios que colocaram a CGD numa situação de profunda fragilidade financeira, obrigando os contribuintes a reforçar, com o seu dinheiro, a sua estrutura de capital, num valor que ascende a milhares de milhões de euros. A justificação é que quem quer saber a verdade sobre a CGD, está contra o banco público, devendo o Estado português ficar longe do escrutínio do Parlamento e dos cidadãos.

O elemento comum a todas estas histórias é que o juízo de moralidade se faz, não em função do interesse individual, mas daquilo que são as “razões de Estado”. Que hoje todas as decisões políticas se façam e justifiquem em função do interesse do Estado, terraplanando aquilo que é a igualdade fiscal, vista numa perspetiva do cidadão, que poucos cidadãos se revoltem e, pelo contrário, se juntem ao coro de políticos agarrados ao Estado, mostra bem quão perto estamos da total subserviência e escravidão, não apenas tributária, mas também, moral. Pelo caminho, não se ouvem coros contra o offshore da Madeira.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

e se um dia...



Uma filha me diga: "Mãe, não quero estudar. Quero pôr música como a Nina".
Sem a magoar, não a posso dissuadir de lutar para ultrapassar a melhor dizendo: "Filha, ninguém põe música como a Nina". Um desafio que, desde já, antecipo. Talvez, o melhor, seja não lha dar o ouvir.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Jornal i #98 - A esquerda já não é o que era

Hoje para o i,

Álvaro Santos Pereira, Maria Luís Albuquerque, Rui Machete, Nuno Crato e Paula Teixeira da Cruz. São cinco nomes, numa lista muito incompleta, de alguns dos ministros aos quais o BE dirigiu um pedido de demissão, num passado não muito distante, acusando-os justamente de mentir ao parlamento e aos portugueses. 

Bom, o PCP sempre foi menos comedido e momentos houve em que pediu a demissão de todo o executivo. Uma simples pesquisa no Google confirma-o. O que faz o nosso primeiro-ministro? Mantém total confiança política e remata a questão para canto: afinal, tudo se trata de uma “trica”. Como se o escrutínio que à oposição se exige, com toda a legitimidade democrática e constitucional, fosse uma futilidade circunstancial.

Melhor teria andado se encomendasse um novo código de conduta ou anunciasse uma comissão para estudar a ontologia da mentira na pós-modernidade. Quanto ao nosso Presidente da República, limito-me a dizer o que já foi escrito neste jornal: “Há um papel, sr. PR.” É inevitável que a falta de credibilidade de Mário Centeno contagie o nosso chefe de Estado e acentue a sensação de orfandade à direita que já se fazia sentir.

Já não espanta que, enquanto apoiantes do atual governo, BE e PCP adotem uma postura passiva, contrária à agressividade demonstrada no passado. Porém, não deve passar despercebida a aceitação, por um partido comunista e outro trotskista, das reivindicações de um banqueiro ou da elaboração, por um escritório de advogados, de uma lei à sua medida.

O episódio da CGD anuncia uma nova esquerda em Portugal: uma esquerda menos guerrilheira, uma esquerda complacente com os “esquemas” do Estado de consultadorias externas e comprometida com a promiscuidade entre o setor privado e o setor público – aspetos que sempre denunciou.

Com estas concessões de ordem “prática” (para não chamar outro nome), a base do seu discurso ideologicamente cerrado sai, naturalmente, fragilizada. Este é um elemento que não deve ser ignorado num momento de grande preocupação social com a ascensão de “populismos” na Europa.

Há boas razões para acreditar que os fracassos das promessas comunistas e, em geral, o desgaste da velha retórica moralista à esquerda, bem como o esvaziamento ideológico que lhe subjaz, criaram o espaço de manobra que permitiu a ascensão, por exemplo, da Frente Nacional, que colhe votos junto de eleitores comunistas e socialistas. Isto dito, não antevejo um movimento semelhante no nosso país, mas este episódio tornou evidentes as debilidades (políticas e éticas) dos partidos à esquerda também por cá.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Jornal i #97 - "Moonlight" e "The Wire": a busca por um projeto de felicidade

Hoje para o i,

A comoção com “Moonlight”, a longa-metragem de Barry Jenkins com 8 nomeações para os óscares, tem sido geral. Não sou exceção. Não sei do que gostei mais: se das belíssimas imagens, da banda sonora ou da história. Baseada no texto não publicado “In Moonlight Black Boys Look Blue”, de Tarell Alvin McCraney, um autor que cresceu em Miami, no bairro de Liberty City, onde o filme se desenvolve, a narrativa centra-se numa personagem, Chiron - pobre, negro, homossexual, criado por uma mãe (Naome Harris) que luta contra um vício de crack -, ao longo de três fases diferentes da sua vida. Se Chiron representa o violento “way of life” dos afro- -americanos que vivem marginalizados nos subúrbios das metrópoles americanas, também é verdade que a marginalidade de Chiron é existencial. A sua alienação manifesta-se, logo em menino, num rosto vincado, um olhar sério e desconfiado, uma postura frágil, de temor e de hipervigilância, de quem desde criança se viu obrigado a defender-se de tudo e de todos. Retraído, pouco sorridente, o espetador quase não o vê brincar, o que facilmente se compreende como inevitável naquela dolorosa experiência de vida. A empatia com Chiron é talvez o ponto mais forte do filme, em muito devida à intensidade notável da representação dos três atores escolhidos para cada uma das fases retratadas.

Tem-se dito que este é um filme dos nossos tempos - “trumpianos”, entenda-se. Não concordo. O filme de Jenkins desenvolve-se como um episódio da segunda melhor série de sempre: “The Wire” (quanto a mim, “Os Sopranos” está no topo da hierarquia). Está certo quem diz que “Moonlight” se aproxima de uma recriação lírica de um episódio de “The Wire” realizado pela francesa Claire Denis, uma das referências de Jenkins. É que acompanhar a história de Chiron é relembrar os “boys of summer” em todas aquelas crianças de West Baltimore. Assistir à quarta temporada de “The Wire” é como testemunhar um acidente de comboio em câmara lenta: desde o início sabemos que Dukie, Randy, Namond, Michael serão “corner boys” e, mais cedo ou mais tarde, absorvidos pelo mundo implacável que os rodeia. Quando chega esse momento - algo a que somos poupados em “Moonlight” -, o estrondo é devastador. Quem esquece aquela mítica cena final do episódio 11 entre Randy, que acaba de perder a mãe, e o detetive Carver? Eu não.

Correndo o risco de elaborar uma generalização simplificada ou uma categorização pueril, “The Wire” é, tal como “Moonlight”, uma saga sobre a afirmação da individualidade, um documentário sobre a luta por um lugar no mundo, por uma identidade, por um projeto de felicidade, por uma vida diferente das circunstâncias de pobreza, corrupção, droga e violência que envolvem aquelas crianças. 

sábado, 4 de fevereiro de 2017

uma sociedade que não quer abdicar de nada

"A sociedade atual vive, portanto, enredada numa inextricável teia de paradoxos: promove um desenvolvimento técnico e cientifico acelerado, ciente de que assim gera problemas a um ritmo superior ao da sua própria capacidade para produzir o conhecimento necessário à sua resolução; exige cada vez maior segurança, num cenário que é precisamente marcado pela multiplicação e pela globalização dos riscos; reclama (e recebe) do Estado níveis de intervenção social e de atuação (preventiva e sucessiva) cada vez mais elevados, ignorando a situação de sobrecarga em que essas exigências o colocam, e retribuindo-lhe com desconfiança e insatisfação permanentes. Trata-se, bem entendido, de uma sociedade em que parece não querer abdicar de nada: nem das oportunidades e altos índices de bem-estar proporcionados pelo vertiginoso progresso tecnológico e científico; nem de elevados níveis de segurança para os bens que considera mais precioso e se encontram garantidos por um estatuto jurídico que assenta sobre extensos catálogos de direitos e liberdade. Sobretudo, é uma sociedade confinada ao tempo presente, que vive como se não houvesse futuro ou, pior, transferindo para as gerações vindouras muitos dos custos - ambientais, financeiros ou político - decorrentes das suas próprias opções e dos seus próprio modelos de desenvolvimento."


Jorge Pereira da Silva, Deveres de proteção de direitos fundamentais, Universidade Católica, 2015, p. 12.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

bingo



"O risco da tecnologia é que nos distraímos. Distraímo-nos pelo que fazemos e não por aquilo que somos. Podes fazer muita coisa com um smartphone na mão ou com o Echo, em casa. Essa capacidade de seres constantemente produtivo não é a mesma de seres reflexivo e pensativo, de estares focado no que significa realmente existir. Estamos tão ocupados a pedalar que não paramos e olhamos para as coisas que realmente interessam, para o que se passa nas nossas vidas ou no mundo em geral. (...) Aquilo que o digital faz, e particularmente o nosso telefone, é que cria um mundo de oportunidades ilimitadas do potencial que existe por aí. Tudo o que está acontecer a toda a hora nos outros sítios é mais sedutor do que o que se está a passar à tua frente, agora. Isso faz com que seja mais fácil para as pessoas perderem atenção sobre a sua família ou sobre o que acontece à volta delas, porque deve haver algo muito mais interessante a acontecer noutro sítio. Podes ver isso pela forma como as pessoas respondem às mensagens que recebem no telefone. Alguns de nós acreditam que a mensagem que está a chegar é a mensagem que vai dizer “eu amo-te” ou que ganhaste um milhão de euros ou que vais ter aquela grande promoção que querias tanto. Mas nunca é. É ocasionalmente, uma vez de cinco em cinco anos, se tiveres sorte. E depende da mensagem.

Acho que esse potencial do que está lá fora e o facto de termos acesso ilimitado a toda a hora, faz com que estejamos cada vez mais ligados a qualquer coisa. À medida que te ligas a tudo, o potencial do que está lá fora torna-se muito mais atraente do que o potencial que tens à tua frente. Quando isso acontece perdemos o foco e a capacidade de estarmos no momento. E acho que isso traz algumas ameaças reais sobre como realmente comunicamos e interagimos com as pessoas à nossa volta."

Entrevista a Mark Curtis, no Observador.

Jornal i #96 - Um "quarto poder" seletivo

Ontem para o i,

Noticiar não é apenas repetir acriticamente uma série de factos, mas também enquadrá-los no espaço e no tempo. Não há informação sem contexto. Contextualizar não implica sequer emitir opinião, mas obriga a um sentido vigilante por parte de quem informa. Os media não são meras plataformas para amplificar mensagens por parte de políticos e causas, mas órgãos de informação. Significa isso que se exige aos media que tenham atenção à mensagem que veiculam, para não se tornarem apenas em instrumento de propaganda. Na última semana, foram várias as notícias que nos mostraram como temos, enquanto leitores, de ser cidadãos vigilantes. No panorama internacional, os media apresentam-nos como inovadora a ideia de Trump de construir um muro para separar os EUA do México, intenção amplamente divulgada durante a campanha e a semana passada concretizada numa ordem executiva. Inovadora? Não, já que na fronteira do Arizona, Califórnia, Novo México e Texas com o México (são 3094 km), uma parte significativa do muro já está construída. Aliás, basta ouvir o discurso do presidente Clinton ao Congresso norte-americano, em 1995, num debate sobre o estado da nação, apresentando a chamada “Operation Gatekeep”, avaliar aquilo que foi a política de combate à imigração por parte de Obama ou até ouvir a entrevista a Hillary Clinton, em 2014, conduzida por Christiane Amanpour, para se perceber que a grande diferença no discurso de Trump face aos seus antecessores ou antagonistas democratas reside na intenção – esdrúxula, sem dúvida – de colocar o México a financiar a sua construção. Trump tem dado sinais claros de que pretende fechar ainda mais os EUA aos imigrantes e o seu estilo favorece o sensacionalismo, mas combater o populismo é também dar informação correta, devidamente enquadrada, e não apenas cavalgar a exploração dos sentimentos do momento.

No panorama nacional, o escrutínio do chamado “quarto poder” sobre a atividade do poder político também tem dado mostras de uma seletividade notável. Desde logo, vários jornais divulgaram com grande entusiasmo as ideias do primeiro-ministro, António Costa, sobre a criação de um fundo monetário europeu, sem nenhum ter tido a capacidade e a memória de recordar que elas são exatamente iguais às que constam de uma proposta apresentada em 2015 por Pedro Passos Coelho. Por outro lado, a acusação do governo grego sobre a suposta discriminação do governo português em relação aos refugiados yazidi mereceu apenas curtas notas, bastando-se os media com a lacónica explicação apresentada pelo governo: ora, não seria expectável sabermos com que base o governo grego proferiu tamanha acusação, ou o simples facto de vivermos num cenário de governação socialista e legitimado por uma maioria de esquerda no parlamento permite que os media aceitem com candura as explicações sucintas que lhes são dadas? E que dizer do anúncio do Presidente da República, que num panorama em que, há mais de um ano, os juros da nossa dívida pública sobem consistentemente, com especial incidência nas maturidades mais longas – em dissonância com todos os países da zona euro, cujos spreads se mantêm estáveis –, afirmou que Portugal está a reestruturar a sua dívida? A forma macia e subserviente como alguns media encaram e trabalham certas notícias ajuda a explicar porque cada vez mais cidadãos perdem interesse por aquilo que é publicado, perigosamente optando por ir atrás dos factos e das notícias no seu estado bruto. O facto de o mainstream mediático ser particularmente sensível às causas da esquerda e aos agentes da proliferação do medo tem ainda um efeito perverso, o de engrossar a tal “maioria silenciosa” que muitos políticos à direita exploram, como base eleitoral, para políticas de regresso ao passado, de fechamento das sociedades: perante o medo e a incerteza, as classes médias tendencialmente preferem um mau conservadorismo do que vanguardas de rutura de esquerda.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

now's the moment

Jornal i #95 - O folclore da resistência ao "trumpismo"

Ontem para o i,

Por muito que nos custe, Donald Trump (DT) já prestou juramento no Capitólio e, pelo conteúdo do seu discurso de investidura, está determinado a cumprir as promessas que apresentou durante a campanha. Aliás, prova disso é a revogação imediata do Obamacare que aproveitou, num instantinho, para concretizar através de uma ordem executiva enquanto Melania (afinal lá encontrou um costureiro de bairro que a vestisse...) trocava um dos seus elegantes outfits. 
Após as cerimónias, várias reações se manifestaram aos mais variados níveis.

A comunicação social, que aparentemente continua frustrada com os seus prognósticos fracassados sobre o ato eleitoral americano, entretém-se (e entretém) a comparar fotografias da tomada de posse de Obama e de Trump, a afluência no metro, etc., desviando-se do debate que se impõe sobre, por exemplo, as consequências da política keynesiana que Trump quer implementar ou da sua política energética. Mas o verdadeiro happening foi no dia seguinte à investidura. Refiro-me à marcha pelas mulheres, com células dispersas em todo o mundo ocidental que, não fosse a sua estranha e folclórica composição, teria tudo para representar um despertar saudável da sociedade civil em face desta espécie de novo mundo que se anuncia e cuja regras ainda não conhecemos: mulheres com t-shirts com a inscrição “I love Islam”, vegans empunhando cartazes onde constava “Vegans against Trampa”, ambientalistas proclamando “Facts count.

Climate change is real”, pessoas com cartazes com inscrições como “Eradicate men” ou “Free Melania”, até às atoardas “I’m quite unhappy”, “Quite annoyed” ou “I am very upset”. A diversidade e pluralidade dos participantes nesta manif e o pot- -pourri de “causas” eram tais que não se compreende se a dita era contra a misoginia de DT, contra os males do mundo ou uma ode coletiva de ódio aos homens. Certo é que ficou registada para a História em pensos higiénicos espalhados (não brinco!) nos bancos do Mall em DC. Entre nós, esta esquizofrenia de bojardas contra tudo e contra nada, que atua como uma espécie de anestesia para os portugueses se distraírem dos problemas do próprio umbigo, contou com a presença de personalidades como Marisa Matias.


Encher as ruas com esta multidão caótica em que ativistas, cada um com os seus achaques, se entretêm a berrar o seu quinhãozinho de absoluto, a empunhar um cartaz com a sua causa, a vociferar de forma enfaticamente desatinada “Fuck you” (como fez Madonna), é, do ponto de vista de quem participa, um descargo de consciência, e, do ponto de vista de quem assiste, um gathering mediatizado bastante divertido. Mas esta estratégia (ou falta dela) de contágio emocional das massas, o discurso deslegitimador incoerente e a diabolização da figura de DT não serão seguramente mecanismos de resistência eficazes (ainda que democráticos) e apenas permitem que o novo presidente continue a cavalgar, ainda mais, neste ambiente de caos.