quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

now's the moment

Jornal i #95 - O folclore da resistência ao "trumpismo"

Ontem para o i,

Por muito que nos custe, Donald Trump (DT) já prestou juramento no Capitólio e, pelo conteúdo do seu discurso de investidura, está determinado a cumprir as promessas que apresentou durante a campanha. Aliás, prova disso é a revogação imediata do Obamacare que aproveitou, num instantinho, para concretizar através de uma ordem executiva enquanto Melania (afinal lá encontrou um costureiro de bairro que a vestisse...) trocava um dos seus elegantes outfits. 
Após as cerimónias, várias reações se manifestaram aos mais variados níveis.

A comunicação social, que aparentemente continua frustrada com os seus prognósticos fracassados sobre o ato eleitoral americano, entretém-se (e entretém) a comparar fotografias da tomada de posse de Obama e de Trump, a afluência no metro, etc., desviando-se do debate que se impõe sobre, por exemplo, as consequências da política keynesiana que Trump quer implementar ou da sua política energética. Mas o verdadeiro happening foi no dia seguinte à investidura. Refiro-me à marcha pelas mulheres, com células dispersas em todo o mundo ocidental que, não fosse a sua estranha e folclórica composição, teria tudo para representar um despertar saudável da sociedade civil em face desta espécie de novo mundo que se anuncia e cuja regras ainda não conhecemos: mulheres com t-shirts com a inscrição “I love Islam”, vegans empunhando cartazes onde constava “Vegans against Trampa”, ambientalistas proclamando “Facts count.

Climate change is real”, pessoas com cartazes com inscrições como “Eradicate men” ou “Free Melania”, até às atoardas “I’m quite unhappy”, “Quite annoyed” ou “I am very upset”. A diversidade e pluralidade dos participantes nesta manif e o pot- -pourri de “causas” eram tais que não se compreende se a dita era contra a misoginia de DT, contra os males do mundo ou uma ode coletiva de ódio aos homens. Certo é que ficou registada para a História em pensos higiénicos espalhados (não brinco!) nos bancos do Mall em DC. Entre nós, esta esquizofrenia de bojardas contra tudo e contra nada, que atua como uma espécie de anestesia para os portugueses se distraírem dos problemas do próprio umbigo, contou com a presença de personalidades como Marisa Matias.


Encher as ruas com esta multidão caótica em que ativistas, cada um com os seus achaques, se entretêm a berrar o seu quinhãozinho de absoluto, a empunhar um cartaz com a sua causa, a vociferar de forma enfaticamente desatinada “Fuck you” (como fez Madonna), é, do ponto de vista de quem participa, um descargo de consciência, e, do ponto de vista de quem assiste, um gathering mediatizado bastante divertido. Mas esta estratégia (ou falta dela) de contágio emocional das massas, o discurso deslegitimador incoerente e a diabolização da figura de DT não serão seguramente mecanismos de resistência eficazes (ainda que democráticos) e apenas permitem que o novo presidente continue a cavalgar, ainda mais, neste ambiente de caos.

Jornal i #94 - Na morte de Zygmunt Bauman

Atualizando prosas do i,

De facto, este início de 2017 já leva consigo várias personalidades nacionais e internacionais. Além de Mário Soares, a Europa perdeu Zygmunt Bauman. O sociólogo polaco, sempre preocupado em escrever para as pessoas comuns e, por isso, fugindo a uma linguagem hermética, é o autor da “modernidade líquida”, uma fórmula para diagnosticar a realidade contemporânea.

A “liquidez” - expressão que carrega uma carga conceptual de tal modo ampla que foi até aplicada por Paulo Cunha e Silva para pensar o Porto, cidade “líquida” - é, em Bauman, o conceito-chave para a crítica às várias “formas da vida moderna”: das relações amorosas às instituições sociais e políticas, o sociólogo aponta-lhes fragilidade e enuncia a sua natureza descartável, e, sobretudo, a sua vulnerabilidade à mudança, fonte de inquietantes incertezas. Considerar Bauman um “pessimista” é, no mínimo, redutor. Aliás, o próprio o rejeitava.

Os temas abordados na sua vasta obra são bastante variados (Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade), mas o aspeto em comum é uma intenção de salientar um dever ser (não jurídico), uma dimensão (e reflexão) moral ou ética que deveria nortear tudo o que respeita à condição humana, dimensão essa castrada ou “abafada” pelo triunfo do racionalismo e pelo individualismo enraizados na modernidade. Por isso, o seu diagnóstico incide sobretudo na condição moral da pós-modernidade.

Tal como sucede com outros gurus da pós- -modernidade, a sua reflexão crítica sobre a modernidade e os seus fracassos e a nostalgia em relação a outros tempos, “pré- -modernos”, são profundamente inconsequentes diante de todo o legado institucional que o homem foi conquistando, incluindo conquistas civilizacionais (e até morais) permitidas pela ciência e pela razão, motores de desenvolvimento da humanidade.

Por outro lado, a grelha teórica pós-moderna de Bauman conduz a um certo relativismo que acaba por refletir a “liquidez” pelo próprio diagnosticada. Depois, acrescentar ao predicado pós “moderno” significa reconhecer a existência de uma rutura com uma outra realidade ou temporalidade, diferente e anterior e, ao mesmo tempo, anuncia uma alternativa sistemática e coerente de ideias correspondentes a um outro modo de ser e de viver. O que, de resto, não acontece. A pós-modernidade continua a ser apenas um rótulo para um conjunto de ideias e noções definidas, quase acriticamente, por mera oposição ao que é moderno.

Jornal i #93 - Um Kamasutra para crianças?

Atualizando prosas no i,

O leitor não deve ficar chocado com a pergunta que coloco no título. É que, em rigor, o Kamasutra para crianças existe. E, imagine, goza do alto patrocínio do Estado português na sua qualidade de grande educador das massas. Ainda assim, nem tudo está perdido: pelo menos, do conteúdo do dito manual não constam imagens explicativas. Refiro-me a um documento datado de outubro de 2016 cujo título é “Referencial de Educação para a Saúde”, carimbado pela Direção- -Geral da Saúde e pela Direção-Geral da Educação, com o objetivo de promover “a educação para a saúde em meio escolar”. É neste pedaço de prosa que se encontram as diretrizes e orientações no que respeita, entre outros temas, aos “Afetos e Educação para a Sexualidade”, dissecados em subtemas, objetivos e metas a atingir. 

No que respeita à educação para a sexualidade (em relação aos afetos sabemos bem quem é o titular da cátedra...), o referencial pedagogicamente explica que, apesar da ubiquidade do sexo, a escola é o local onde os alunos [do pré-escolar e do ensino básico] manifestam, de forma mais impressiva, os desenvolvimentos sexuais nos vários ambientes, incluindo “na relação com os docentes e trabalhadores”. A prosa social construtivista desenvolve-se entre orientações várias no que respeita às “relações afetivas” e aos valores” até ao subtema 4, sob o manto diáfano do “desenvolvimento da sexualidade, onde se prevê, em antecipação precoce do processo de erotização natural de de-senvolvimento infantil, o objetivo de os alunos do pré-escolar adquirirem “uma atitude positiva em relação ao prazer e à sexualidade. O Estado quererá ensinar bebezinhos de três anos a ter prazer? Por fim, o referencial propõe ainda ensinar os alunos do 2.o ciclo (5.o e 6.o anos) a distinção entre interrupção voluntária e involuntária da gravidez. 

Não faltará muito para que, copiando o exemplo brasileiro, o governo distribua um kit de prevenção contra a homofobia recheado de “manuais escolares” e outro tipo de “material” que estimula experiências autoeróticas e homossexuais. É, contudo, lamentável que o Estado arrogue para si o direito de, através de um manual de instruções, construído de forma centralizada, definir unilateralmente um modelo único de educação para a sexualidade. Profundamente relacionadas com o conjunto de valores que cada família escolhe, em liberdade, as escolhas quanto à educação sexual devem, impreterivelmente e em primeira instância, passar pelo crivo familiar, pelo respeito pela sensibilidade, pelas questões de consciência e pela autonomia dos pais.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

é sempre assim

"Oh, Lucy", disse-lhe a mãe, as pestanas molhadas contra a sua cara, "sê feliz. Podes ser, desde que tentes. Foste tão feliz em criança ...

Quando ela era boa, Philip Roth, 2016, Publicações D. Quixote

domingo, 8 de janeiro de 2017

todos os homens são "maus". Exceto Alain Delon


Le Cercle Rouge (1970), Jean-Pierre Melville

o que ainda temos

Quando vi o último filme de Mia Hansen-Løve tive a sensação de que a personagem de Huppert inicia uma fase nova na sua vida (afinal é isso o que está por vir) que começa com a morte da Mãe, com o divórcio, com o fim da publicação dos seus livros que anuncia a sua reforma, com o nascimento de um neto e com uma nova relação com um antigo aluno. Há dois factores que lhe permitem construir (e aproveitar) o que está por vir, essa nova fase marcada por uma libertação definitiva, por um corte com o passado: a natureza irreversível de todos aquelas marcos ou pontos de viragem da vida de Huppert (a morte da mãe, a aproximação da reforma e do fim de uma carreira, o nascimento de uma criança) e o caráter ou maneira de ser da personagem marcado por um certo conformismo ou resignação.

O problema com que me tenho deparado, sobretudo na vida de algumas pessoas que me são próximas é, em primeiro lugar, a dificuldade em lidar com o sofrimento, com o vazio que essa libertação provoca e, muitas vezes, com a trágica ausência de um corte radical, decisivo e final. É, talvez, um problema meu e dos que me rodeiam; um problema do nosso caráter: de rejeição do que esta por vir. Não por teimosia mas por esperança em conseguir manter o que temos no presente ou por força de uma enorme vontade em preservar os cadinhos de passado no presente. É uma espécie de inconformismo que nos leva a lutar pela vida, pelas relações amorosas e familiares, por uma vida profissional melhor, procurando, ao mesmo tempo, evitar mudanças no passado, prolongar os bocadinhos de passado no presente ou desfrutar do lado bom do presente. O que está por vir não nos interessa enquanto nos agarramos, com unhas e dentes, àquilo que (ainda) temos.





terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Jornal i #92 - Construir o futuro

O texto de hoje para o i,

2016 consagrou um novo politicamente correto, sobretudo entre os aspirantes a intelectuais, que passa por criticar as redes sociais como fonte de boa parte dos problemas da contemporaneidade. Podemos ler com frequência e quase até à náusea que as novas plataformas são fonte de notícias falsas e de uma suposta desinformação; estimulam a digitalização da vida social, o isolamento e o alheamento humano; o “algoritmo” é frequentemente invocado – mesmo por aqueles que não compreendem o que seja – para fundamentar o controlo que a cibernética exerce sobre as nossas vidas; a tecnologia terá sido a causa da agonia das mediações jornalísticas tradicionais.

Não negando a pertinência dos fundamentos apresentados (aliás escrevi há umas semanas atrás neste jornal um texto sobre a série da NetFlix, “Black Mirror”), e não querendo construir uma apologia às ditas plataformas e redes, a verdade é que me parecem curtos e pouco conclusivos os argumentos apresentados.

Desde logo, porque o impacto das redes e das plataformas não é de agora, tendo ganho uma relevância incontornável em muitos dos eventos mais relevantes do planeta nos últimos anos, com um papel fundamental em movimentos sociais tão variados como o “Occupy”, a Primavera Árabe, ou a eleição de Barack Obama e de Donald Trump. 

Acresce que assumir uma postura saudosista e neo-ludista que se esgota na rejeição da evolução tecnológica e numa apologia do que “já-não-voltará-mais” não oferece grandes soluções para responder aos contornos de um presente e um futuro inevitáveis. Mais do que simplesmente rejeitar a tecnologia (na maior parte das vezes apenas de uma forma meramente teórica, porque no final poucos são os que verdadeiramente abdicam dela) e culpá-la por aquilo que ela nos trouxe – e, reforço, partilho de um certo ceticismo em relação ao impacto que a cibernética trouxe para a privacidade, a proteção de dados, e o condicionamento do cidadão e da formação da sua personalidade de modo autónomo e livre –, há que saber ir mais além e encontrar mecanismos de resposta, sejam normativos, sejam sobretudo filosóficos e conceptuais, que acompanhem a mudança, como já tem ocorrido ao nível das políticas públicas que quer a União Europeia quer os EUA têm vindo a apresentar sobre a “internet das coisas” ou a “inteligência ambiente”, ou até sobre os problemas das novas intermediações sociais promovidas pela tecnologia e da iliteracia digital. Com frequência as tecnologias causam disrupções na cultura e na forma de viver do Homem, e nem sempre as mesmas representaram evoluções na história da Humanidade.

A solução nunca foi, porém, rejeitar a mudança, mas refletir sobre ela, construindo novas e renovadas contemporaneidades que têm feito dos novos tempos, épocas de evolução e de progresso ao serviço do Homem.

Jornal i #91 - Uma mulher na Casa Branca

O último texto de 2016 para o jornal i,

O movimento feminista persiste em ficar de luto depois de Hillary Clinton ter falhado a conquista da Casa Branca em Novembro passado. Não devia.

Numa eleição em que o Presidente foi eleito com menos de dois milhões de votos, o papel de Kellyanne Conway, que assumiu a gestão da campanha de Donald Trump num momento crítico e foi recentemente nomeada conselheira principal do presidente, foi fundamental. Não é exagero dizer que Conway é, neste momento, a mulher mais influente de Washington. Ainda assim, imagino que esta afirmação cause algum espanto por força da distração forçada em torno desta mulher a que os media nos obrigam. Desconfio que, caso Conway fosse Democrata e não Republicana, seria já um badalado ícone feminista.

Aos 49 anos, mãe de quatro filhos, Conway foi a primeira diretora de campanha na história dos EUA que, de forma bem-sucedida, conquistou a Casa Branca. Esta especialista em estudos de opinião em torno do sexo feminino, iniciou a sua experiência nos bastidores do supostamente misógino Partido Republicano nos anos 80, quando integrou uma equipa de sondagens de Ronald Reagan. Self made woman, empresária, Conway aceitou ser conselheira do Presidente Trump tendo rejeitado um cargo com mais relevo na Administração presidencial, por entender que seria incompatível com a sua vida familiar. Em vez de criticar esta escolha de Conway, o movimento feminista devia ver em Conway um exemplo do sucesso da sua causa: a expansão de oportunidades para as mulheres permitindo-lhes, verdadeiramente, escolher como conciliar a vida profissional com a vida familiar.

2017