Uma pretensa criminalização do “piropo” fez correr rios de tinta e não faltou quem por estes dias tenha aproveitado a opção do legislador para a ridicularizar. Até o jornalismo aceitou acriticamente a ideia de que o “piropo dá cadeia”.
Pondo ordem na aldeia, convém esclarecer: senhores jornalistas, o que se criminalizou não foi o galanteio, mesmo que grosseiro. Não é todo e qualquer piropo que preenche o tipo legal e consubstancia aquilo que se entendeu criminalizar: o que está em causa é a criminalização de “propostas de teor sexual”, apenas os “piropos” que são “propostas de teor sexual” são criminalizadas.
Portanto, o que está aqui em causa é uma questão hermenêutica, um problema de interpretação da lei, que cabe aos juízes decidir. Ainda assim, parece-me uma questão de puro bom senso entender que não será, por exemplo, qualquer palavra de um homem dirigida a uma mulher na rua, que preencherá o conceito de “proposta de teor sexual”.
Concretizando, serão exemplos de piropos que não preenchem aquele conceito: “és como um helicóptero: gira e boa”; “ainda dizem que as flores não andam”; “Só a mim é que não me calha uma destas na rifa”; “Diz-me lá como te chamas para te pedir ao Pai Natal”; “Acreditas em amor à primeira vista ou tenho que passar por aqui outra vez?”
Foi ainda alvo de sátira o facto de, em alguns casos, a pena ir até 3 anos de prisão. Houve mesmo quem tenha dito ser hoje possível encontrar um “banqueiro burlão em liberdade e um trolha sem educação na prisão”. Este tipo de reação também me parece manifestamente exagerada: o agravamento da moldura penal encontra-se previsto no artigo 171.º e não no artigo alterado, o 170.º, sob o título “abuso sexual de crianças”. Pelo que eu pergunto: será assim tão ridícula a vontade do legislador em ser mais rigoroso quando a vítima é uma criança, menor de 14 anos?
Para terminar, não deixo de colocar duas questões que gostava de ver discutidas a propósito do tema: será que a ambiguidade interpretativa que a alteração legal traz consigo não representará uma intervenção moralizadora excessiva do Estado na sociedade, carregando em si uma espécie de obsessão ou “delitofobia”? E será que esta mesma ambiguidade não abre um precedente que pune apenas o homem por determinado comportamento social e nunca uma mulher?
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