terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Jornal i #87 - Libertad o muerte, morte sem liberdade

Sobre a morte de Fidel Castro (aqui),

O deslumbramento com as utopias tem a virtude – ou o defeito – de separar o mito do homem, fabricando uma aura de herói do tipo cinematográfico que ignora olimpicamente a dimensão real e agreste da vida vivida pela pessoa concreta que o inspira. A morte física de Fidel Castro – há muito semidesaparecido do mundo dos vivos – é mais um passo no processo ideológico de perpetuação de alguém que paulatinamente foi deixando de existir como um simples homem para se tornar no símbolo de uma narrativa que sustenta há décadas diversos aparelhos políticos e retóricas de alienação dos cidadãos e de certas elites culturais, não só na América Latina, mas um pouco por todo o mundo.

“Ninguém conseguirá matar--me”, terá dito Fidel, herdeiro de Bolívar e profundo conhecedor deste processo manipulatório quase cinematográfico, consciente também de que as marcas da sua vida terrena irão ser esquecidas e que a indiferença o salvará para a história; “a História absolver-me-á”, sentenciou Fidel no início da sua luta revolucionária, e o que sobreviverá será a imagem forte, sem contexto real, de um líder carismático, firme, com todos os seus símbolos, o seu charuto, o traje militar, o Rolex no pulso, uma imagem que corporiza e dá tangibilidade sobre- -humana à revolução que supostamente libertará os povos do capitalismo, da opressão e da desigualdade.

Pouco importam as aderências da imagem ao real; a libertação é uma narrativa instrumental, dirige-se a um povo abstrato que não há jamais de existir: a utopia fabrica-se para ser capturada, serve para alienar o povo concreto, para o anestesiar durante o processo revolucionário contra as minudências da pobreza, da ausência de liberdade, da inexistência de uma justiça social concreta que apenas garante a igualdade na pobreza. 

Fidel não é apenas mitificado por carisma, reverência ou mero deslumbramento, mas por interesse. É obvio para (quase) todos que “o rei vai nu” e que Cuba é desde sempre uma nação adiada, mas, um pouco por todo o mundo, os que fingem não ver o lado tirano e despótico de Fidel e o falhanço rotundo da revolução não estão apenas condicionados pelas lágrimas e pela comoção, mas pela necessidade de perpetuar o mito e prosseguir a canonização.

Fidel, fisicamente morto, será muito mais útil aos que vivem dos dividendos da Revolução Cubana, pairando muito para lá dos limites geográficos de uma ilha onde as marcas da prostituição, da arbitrariedade, da fome, e do exílio sempre causaram uma certa incomodidade que se irá desvanecendo com o devir do tempo, agora que apenas é necessário idolatrar a sua síntese, a sua imagem, bem lapidada e sem as agruras de certas menoridades humanas que serão, a seus olhos, desculpáveis face à dimensão dos bons serviços prestados à humanidade ou, pelo menos, a alguns dos que, ainda assim, vivem confortáveis no mundo dos vivos à custa da sua mensagem.

“Libertad o muerte”, gritava Fidel, que faleceu sem cumprir os desígnios da Revolução Cubana. O seu mito, porém, sobreviverá, e não faltará quem, em seu nome, continue disposto a perpetuar a sua mensagem, lutando e perseguindo a sua peculiar ideia de liberdade. 


Todas as ditaduras são censuráveis mas, depois de ruírem, algumas são particularmente perigosas quando evoluem para uma dimensão romântica que impede, no debate público, que as submetamos ao julgamento objetivo e bem terreno da história.

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