terça-feira, 22 de dezembro de 2015

a perspetiva de Rentes de Carvalho sobre o comunismo

No meio de tanto rebuliço sobre banca e governo (este e o anterior) para desanuviar um pouco os ares partilho aqui a perspetiva de um escritor português que tenho vindo a descobrir, primeiro o seu blog e, agora, um primeiro romance, Ernestina, do J. Rentes de Carvalho. Há uma passagem maravilhosa na qual a personagem principal relata a sua primeira (e julgo que única) relação com o comunismo, essa "abstração" que lhe foi apresentada por um tal de Camilo. Convém ter presente que a trama se desenrola durante a ditadura de Salazar:

"Quase no fim, e embora nunca tivesse dado conta disso, ele convenceu-me de que eu próprio era vítima do sistema. Bastava ver o modo como o reitor, exemplo típico do fascista brutalhão, tinha abusado da sua autoridade, castigando-me sem reunir o conselho disciplinar. Como se eu não tivesse direitos! Aliás, ficasse eu a saber que o estudante era um operário como qualquer outro, só que em vez de usar as mãos usava a cabeça. Por isso era nosso dever unirmo-nos às massas trabalhadoras e lutarmos juntos pela nova ordem social.


Meses a fio o Camilo iria entregar-me à socapa números do Avante e livros de doutrina marxista que deveriam ter andado por muitas mãos, pois vinham sempre amarrotados e sebentos. A minha obrigação era lê-los, discuti-los com ele, até ao dia em que, suficientemente instruído, pudesse entrar em contacto com os outros camaradas da célula.

Eu tentava ler, mas logo me aborrecia. Zola, Balsac, Dickens, Eça de Queiroz, eram infinitamente mais excitantes e a sua solidariedade com os oprimidos menos abstrata. Além disso, nascera avesso a doutrinas e dogmas. O padre da catequese tinha tentado, o professor de Moral tinha tentado, mas a minha reação instintiva fora sempre de rebeldia."

Ernestina, Rentes de Carvalho, 2009, p. 264 e 265.

Também publicado aqui.

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