"Primeiro perdemos o retrato. Esse, que os mais sortudos ainda admiram, pendurado na parede em casa dos avós, em tom sépia próprio dos anos 20 e 30, com famílias a banhos e todo o tempo do mundo disponível, numa pacatez e serenidade para lá da fotografia e do nosso tempo.
Depois, perdemos os álbuns de família, apenas apresentados a visitas em ocasiões que justificavam uma partilha dos momentos de intimidade, de comemoração, viagens a locais exóticos ou simples instantâneos da vida familiar. Mas a família mudou, tornou-se um “hábito indolente”, diz Agustina, e a existência dos álbuns sofreu alterações, tendo passado do suporte físico para o digital. Agora, o seu lugar é nas redes sociais onde se publicam fotos de todos, literalmente todos, os momentos da nossa vida, desde a ida ao forno comunitário da aldeia ancestral perdida na Beira Alta à visita aos fornos crematórios de Auschwitz-Birkenau. Tudo é passível de ser fotografado, publicado e partilhado. Ou está online ou não aconteceu, é o mantra dos tempos.
Vem este texto a propósito da “infantilização de adultos”, um fenómeno que se verifica cada vez mais nas nossas “sociedades pós-modernas”. Este rótulo é aplicável a todos os pais que usam a internet e as redes sociais para documentar a evolução dos filhos (desde ecografias às várias transformações etárias), expondo-os voluntariamente a todo o tipo de depravados. A criança é entendida como um brinquedinho manipulado ao sabor dos pais, sendo mero instrumento de comunicação e sociabilidade nas redes. Juridicamente, existe um possível conflito entre a dignidade da pessoa humana e a “objectualização” da criança.
Foi isto que, em síntese, decidiu o Tribunal da Relação de Évora ao confirmar a proibição de um casal publicar fotos da filha. A tecnologia tomou conta de nós e da nossa axiologia, nesta sociedade da exposição que renuncia à peculiaridade das coisas, dos álbuns, dos retratos e até dos filhos."
Hoje, para o i.
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