Esta semana, para o i:
A privacidade, enquanto ideia, valor ou direito, está em perigo. O Estado social, para funcionar, interfere cada vez mais na vida dos cidadãos em busca de informação, em nome do cumprimento eficaz das suas funções. Mas a tendência intrusiva é acompanhada por algumas empresas do setor privado (como o Facebook, por exemplo) que, como ficámos a saber depois das revelações de Edward Snowden em 2013, assumiram a tarefa de espiar a vida das pessoas, as suas deslocações, as suas preferências pessoais e suas comunicações. Mesmo aplicações insuspeitas como o Pokémon GO têm sido discutidas por força do tipo de informação que recolhem sobre o utilizador e que se traduz num poder significativo a quem a ela aceda, vulnerabilizando a posição do jogador.
Em Portugal, o governo tem supinamente embarcado nesta tendência destrutiva de uma conquista civilizacional e democrática com mais de 200 anos, menosprezando a rigorosa proteção que os dados pessoais merecem, sobretudo à luz dos desenvolvimentos ao nível da União Europeia que culminaram com a aprovação, há alguns meses, de um pacote legislativo amplamente discutido e com um impacto económico ainda desprezado em Portugal.
No início de agosto, aproveitando a anestesia e o entorpecimento mental das férias, os consulados passaram a facultar dados pessoais dos emigrantes a terceiros. A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) manifestou-se contra. Alguns dias depois, o governo pretendia facilitar o acesso e o controlo da Autoridade Tributária a dados pessoais de natureza sensível: o número da conta, o saldo e o valor anual final existente em dado momento. Esta ingerência, por muito que se procure fundamentar com o combate à corrupção e à perseguição dos mais ricos, é excessiva por autorizar de forma generalizada o acesso a dados pessoais sensíveis de todos os portugueses, sem qualquer diferenciação, limitação ou exceção em função do objetivo prosseguido. O que o governo pretendia era implementar uma vigilância generalizada e em larga escala que, como a CNPD conclui, é desproporcional e inconstitucional.
Aparentemente inocente, o acesso por parte do Estado a dados pessoais permite uma forma de monitorização ou de vigilância, designada por Roger Clarke como “dataveillance”, que consiste na observação não através de uns binóculos ou de uma câmara, mas através da recolha de factos e dados da vida dos cidadãos. Ainda que menos imediatos e talvez mais abstratos, os perigos para a liberdade individual e até para o livre desenvolvimento da personalidade não são muito distintos dos profetizados por Orwell ou por Bentham.
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