Aproveitei as férias para ler alguns dos livros de Camilo Castelo Branco vendidos com o “Expresso”. Destaco na crónica de hoje “A Queda dum Anjo”, obra que romanceia com fina ironia a ida de um transmontano, o morgado de Agra de Freimas, para o parlamento.
Calisto Eloy de Silo e Benevides de Barbuda era rude e provinciano nas vestes mas puro nos sentimentos e na alma, um ingénuo e generoso defensor de valores que sentia como maiores. Um anjo, então! Leitor contumaz dos “clássicos”, profundo conhecedor da língua latina e grega, Miguelista, acérrimo defensor dos costumes, da rígida moral católica e avesso ao progresso, o morgado inclusive casa - não por amor, claro está - com a prima Teodora, uma mulher de elevadas qualidades morais, ainda que pouco adornada por algo mais do que as virtudes da alma.
Chegado à capital, o morgado mergulha com orgulho numa cruzada messiânica e quixotesca contra os costumes corrompidos, os “modernismos civilizadores”, fazendo da moral programa político, convencido de que lhe estava destinado salvar a pátria lusa recuperando a moral lisboeta. Percorridas algumas páginas e diversos anos na narrativa, Camilo oferece-nos um Calisto polido, mundanizado com a vida lisboeta, elegantemente vestido, fumando charutos e acompanhado por uma bela e elegante amante, pavoneando-se nos teatros da capital. Até de partido mudara: tornara-se deputado do governo, traindo todos os princípios que outrora defendera.
Na convivência com um Mefistófeles que, com diversas tentações, lhe vai polindo a ingenuidade e salpicando a pureza, ao longo do romance assistimos à transformação do transmontano hirto, seco, inflexível, que desdenhava da dimensão material e terrena da vida, embevecido com a beleza de grandes e abstratas teorias, num homem materialista que, sem a muleta do programa moral, no qual já não acredita, se torna politicamente vazio. O anjo cai e fica “simplesmente o homem, homem como quase todos os outros, e com mais algumas vantagens que o comum dos homens”. Vem-me à cabeça aquela frase de Pascal: “A grandeza do homem vem de saber que é miserável.”
Este é um livro sobre a fragilidade e imperfeição da vida humana, mas também sobre a ingenuidade de querer fazer da política um mero espaço de afirmação de valores morais. Camilo sinaliza-nos subtilmente que a política corrompe o homem, não sendo passível de reforma pela mera proclamação impoluta e messiânica dos valores morais. Calisto confunde aquilo que é a dimensão privada com a imposição de uma suposta moral pública, caindo em profunda contradição. A crítica de Camilo é tão ampla quanto atual. Recomendo a sua leitura aos mais jovens e emergentes “Calistos” que, no entusiasmo e deslumbramento próprios da idade, andam um pouco por aí a cantar a salvação da pátria, recuperando ideários políticos caducos cuja única bandeira assenta num discurso de base moral. Não vá dar-se a circunstância de os encontrarmos por aí a passear generosos decotes.
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