Hoje, para o i,
Logo à chegada ouvi o tom magoado e revoltado de um taxista, esse barómetro do sentir do povo em qualquer recanto do planeta, sobre a perspetiva política e social do país que o acolheu. Gostava da América e, ao fim de 40 anos a viver por cá, dizia-se mais americano do que paquistanês. Mas esta vida bonançosa, toda regalos, às vezes tinha nuvens que traziam tristezas intermitentes e, muitas vezes, demasiadas talvez, repetia a mesma lista de queixas resumidas numa trágica sentença: “In America it’s all bullshit.” Perguntei-lhe porquê e deu-me a explicação habitual: “Because of the politicians.”
Quem o censura? Eu não, seguramente. Sobretudo pelo que temos assistido nesta última etapa da corrida presidencial nos EUA, esta variante do cinema noir. Como o jazz, os blues, os musicais da Broadway, o cinema noir tornou-se uma forma de arte americana, influenciada pelo êxodo do expressionismo alemão. Termo cunhado pelo francês Frank Nino, o noir revelou o lado negro do American dream. São geralmente filmes que exploram o rosto sinistro da condição humana, as falhas de caráter, a deslealdade nas relações sociais e a falta de crença na moral social. As narrativas constroem-se sobre uma corrupção moral: não há um verdadeiro herói, porque o herói é um vilão e simpatizamos com ele mesmo sabendo que não está do lado moral e legalmente certo. Os filmes noir dão- -nos, por isso, uma perspetiva muita pessimista sobre a vida em sociedade e sobre a existência humana, uma desolação da espécie. A verdade é que, apesar da tristeza que os carateriza, de certo modo são sempre engraçados.
A corrida presidencial tem assumido esse lado “trágico-cómico” dos filmes noir, oferecendo-nos mais “vilões” do que propriamente “heróis”. Ambos os candidatos assentaram estratégias na destituição moral do caráter do adversário. Nos dois debates presidenciais, ambos sentiram necessidade de pedir desculpa: Hillary por causa dos 33 mil emails confidenciais e Trump na sequência de um vídeo insultuoso para o género feminino que verdadeiramente só surpreendeu os mais incautos. Ao mesmo tempo que o vídeo de Trump ganhava espaço no mainstream, os media publicavam um email de Hillary Clinton com uma série de afirmações que questionam a sua seriedade política e intelectual (entre elas, afirma a necessidade de ter uma posição em público e outra em privado, quase que compreendendo os impropérios ditos em privado por Trump, agora revelados). A autofagia está em curso; os próximos dias serão provavelmente ricos em ataques de caráter e vinganças mil entre os candidatos presidenciais, empobrecendo o debate político. No mano a mano, Clinton leva a dianteira. Desconfio até que será o próprio Trump a atribuir um papel salvífico a Clinton, facilitando o seu desempenho neste filme noir em exibição.
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