quinta-feira, 4 de maio de 2017

Jornal i #107 - De "Black Mirror" à "baleia azul"

Esta semana, para o i,


Nos últimos dias a comunicação social deu nota de um novo pânico social que, vindo ao que parece da Rússia, tem vindo a trilhar caminho pela Europa tendo chegado já ao Brasil: o jogo da “baleia azul”. Tudo começa (where else?) no Facebook ou no WhatsApp, numa troca de mensagens com um “curador”, que desencadeia uma sequência de desafios lançados diariamente para instigar os jogadores - maioritariamente adolescentes - à automutilação e, na fase final, a cometer suicídio. Ainda não há nenhum caso confirmado de suicídio, mas as forças policiais de vários países estão já a investigar algumas suspeitas e os alertas nas redes sociais feitos pelas autoridades multiplicam-se. O que é verdadeiramente extraordinário neste jogo é o controlo à distância, a obediência cega e religiosa, aos comandos de uma autoridade desconhecida, sem rosto, digital, que, intermediada pela tecnologia, assume o controlo mental (e real) da vida dos jogadores.

O “i” noticiava que o filme “Nerve” teria inspirado a “baleia azul”, mas o pior resultado desta forma de manipulação da vida real foi filmado por Charles Brooker no episódio “Shut up and Dance”, da série “Black Mirror”. Trata-se de uma verdadeira master class sobre a perda de controlo das nossas vidas que nasce de um cruzamento trágico entre a tecnologia e os segredos e as fraquezas humanas. A personagem principal é um jovem (Kenny) que, trabalha e estuda; não lhe conhecemos malícia nem comportamentos reprováveis; certo dia, inadvertidamente, a irmã descarrega malware para o seu computador. Kenny não sabe mas, do “outro lado”, alguém o espia recolhendo imagens na câmara do seu portátil enquanto o jovem se masturba. Imediatamente depois, recebe um email com uma ameaça de chantagem: o filme será enviado à mãe, amigos e colegas de trabalho, a menos que Kenny cumpra uma série de instruções. Ao longo do episódio vamos conhecendo casos semelhantes, entre eles o de um indivíduo, casado e com filhos, que visita com frequência sites de pornografia infantil. Procurando puni-las pelos seus segredos e fraquezas confessados, inadvertidamente, diante de um ecrã, um hacker chantageia os vigiados, enviando-lhe instruções por mensagens e emails e incitando-os a cometer crimes, como o assalto a um banco ou o homicídio. O último desafio é lutar até à morte com outra vítima, enquanto um drone filma a cena.

A identidade do hacker nunca é conhecida e, ao que parece, esta dark force é metaforicamente a tecnologia em si mesma, transformada num enorme motor de vingança e de justiça vigilante para punir os pecadores entre nós. Mas, tal como acontece noutros episódios, a tecnologia não é a origem da ruína humana, são os próprios, as suas ações e comportamentos e, sobretudo, uma aceitação acrítica, irrefletida e irresponsável (uns dirão desinformada) das circunstâncias e das consequências da utilização da tecnologia, seja um computador, seja um telemóvel. Alguns leitores saberão que o fundador do Facebook utiliza uma mola para tapar a câmara do seu computador, como saberão também que a CIA é capaz de entrar nas nossas “smart TV’s”, “mas será mesmo assim?”, perguntam os mais incautos. Quanto a estes, o mesmo ceticismo e a mesma dúvida terão despertado aquando do relato desta notícia, mas ela é a prova de que é cada vez mais realista e menos fantasioso um tema há muito tratado pelos neoludistas: o receio de vigilância, de controlo (individual ou social) e de punição, seja pelo Estado seja por terceiros, intermediado pela tecnologia, da qual cada vez mais dependemos.

Jornal i #106 - O BE e a Venezuela: uma evolução a elogiar?

O texto da semana passada para o i,

Há uma certa esquerda cuja suposta superioridade moral deriva muito mais das palavras do que dos atos, razão pela qual sempre teve dificuldade em lidar com a realidade e com a natureza das coisas – sobretudo quando estas contrariam as narrativas oficiais que justificam o progresso social nos regimes socialista. O caso da Venezuela é, talvez, o mais recente exemplo. Em 2013, aquando da morte de Hugo Chávez, a Venezuela surgia na boca do Partido de Esquerda Europeia como um exemplo da democracia para a Europa: “enquanto que na Europa a democracia está a falhar, na Venezuela a democracia participativa tornou-se num sinal de identidade”, diziam-nos.

Hoje, em face do caos que as televisões portuguesas começam a reportar, estranha-se que por cá nunca tenhamos assistido à promoção das figuras venezuelanas ao estilo “Luaty Beirão”, reflexos dos espasmos esquerdistas de revolta. Nem a detenção, em 2014, do líder da oposição, foi suficiente para preencher os exigentes critérios do BE. Leopoldo Lopéz parece não preencher os mínimos olímpicos das cartilha revolucionária para suscitar indignações à esquerda. Tão pouco terá tido heroicidade suficiente para ter espaço mediático, uma vez que não lhe foi dada a oportunidade de aparecer nas televisões portuguesas a dar explicações e entrevistas sobre os contornos do regime Venezuela.

Na narrativa do BE, Lopéz, até à sua prisão, era apenas o líder de uma fação da oposição Venezuelana, ligada aos EUA, que apostava num golpe de Estado lento, segundo as técnicas do manual de Gene Sharp. Afinal, a Venezuela chavista, cobiçada pelas suas reservas petrolíferas, sempre fora alvo de tentativas externas de desestabilização e de campanhas mediáticas hostis. Para o “esquerda.net”, em 2014, a democracia venezuelana estava ameaçada “pelos golpistas de sempres”. Um ano mais tarde o Pravda bloquista, não fossemos ser intoxicados pela propaganda ocidental, explicava-nos que “os principais meios de comunicação norte americanos, espanhóis, e os da direita latino-americana, trabalhavam arduamente para marcar a agenda informativa sobre a Venezuela com o objetivo de sedimentar a ideia de que estávamos perante um “Estado falido””.

Vergado pela brutal realidade dos factos que nos têm chegado a casa todos os dias, felizmente, o BE começa a aproximar-se timidamente das visões outrora sedimentadas pelos imperialistas e pela direita. Não poderia ser de outra forma, aliás, num partido que agora se senta no lugar do arco do poder e que, progressivamente, se tem vindo a institucionalizar como partido do sistema. O volte-face bloquista manifestou-se em maio de 2016, numa opinião no JN de uma deputada do BE onde, num texto recheado de vacuidades, procurava estabelecer as diferenças entre a Venezuela e Angola, a propósito – como não podia deixar de ser – do “caso Luaty Beirão”. Timidamente, a deputada Mortágua admitia “erros” na democracia da Venezuela, que se havia degradado, sem, contudo, nos precisar quais. Ficamos sem saber se os “erros” a que o BE se refere dizem respeito aos portugueses perseguidos na Venezuela - muitos deles espoliados dos seus pequenos negócios, nacionalizados ou até roubados à força de milícias populares por ordem do regime -, aos jornalistas que não conseguem exercer a sua função, ao Parlamento que viu suspensos os seus poderes por decisão Presidencial ou à incapacidade de realizar eleições, perante um Maduro que pretende pela via constitucional manter-se indefinidamente no Poder. A pergunta que o BE também não nos responde é: porque razão o nosso Parlamento só serve para montar o folclore de alguns, em vez de defender, como se impõe, a liberdade e os direitos de todos os nossos cidadãos no exterior?

Tentando fugir entre os pingos da chuva, a semana passada assistimos, sem que isso tenha sido dissecado na nossa imprensa, à capitulação silenciosa do BE, que cinicamente confirmou o voto de “condenação e preocupação”, no Parlamento, da situação que se vive na Venezuela, deixando o PCP, que votou contra, numa posição vergonhosa e isolada. Se o voto no Parlamento esteve finalmente do lado certo, alguns corações bloquistas continuam a bater do lado errado: em Paris, a eurodeputada Marisa Matias não hesitou em “grandolar” lado a lado e a pedido do candidato francês, Jean-Luc Mélenchon, derrotado na primeira volta das eleições presidenciais, que persiste em afirmar que o único problema da Venezuela é a queda do preço do petróleo e que propõe a adesão francesa à Aliança Bolivariana, à qual pertence o regime de Maduro. O tempo nos dirá se o voto do BE foi consistente ou se, como diz o ditado, até um relógio parado nos dá a hora certa duas vezes ao dia.