domingo, 10 de junho de 2018

qualquer coisa amarga como fim de doçura

"- Ana... Eu vou-me embora, amanhã. Tenho que ir, bem sabes. Adeus, Ana. - Dum fôlego disse tudo aquilo; e intimamente felicitou o seu arrojo de cobarde. 
- Vai-se embora? - Era como se ela achasse natural, como se fosse muito natural, já esperada, a resolução duma partida. Deitada na cama, deixara de bamboar os pés descalços, de fazer malabarismos com as chinelas de verniz; abria-se um vácuo, uma profundidade, dentro de si; qualquer coisa que voava, que fugia; qualquer coisa amarga como fim de doçura; qualquer coisa como um rugir de multidão desvairada dentro duma cabeça quieta, erguida, atenta."

Agustina Bessa-Luís, Deuses de Barro, p. 104