quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Jornal i #90 - Progressistas ontem, reacionários hoje

Ontem, para o jornal i,

Há duas semanas o “i” publicou uma entrevista com o Ricardo Araújo Pereira (RAP) onde o humorista confessava as censuras do politicamente correto e a dificuldade de usar, nos dias de hoje, certos termos em contexto de humor, como “marrecos, coxos e mariconços”. Os ofendidos rapidamente se manifestaram e as reações não tardaram a surgir, sobretudo por parte de quem representa a(s) causa(s) das “minorias” visada(s), ainda que se tenha registado uma menor ênfase na defesa de marrecos e coxos.

Coincidência ou não, há algum tempo que revejo “Friends”, a famosa série que conta as aventuras e desventuras de um grupo de amigos que vivem em Nova Iorque. Ainda não terminei este longo processo, mas creio, próxima do desenlace, estar em condições de concluir que os ofendidos por RAP não são apreciadores da série. Perguntei ao Google que rapidamente me a conhecer, pela simples pesquisa dos termos “Friends” e “homofobia”, uma infindável lista de críticas por parte do jornalismo progressista de defesa de micro-causas. Devo dizer, porém, que em vários aspetos, e situada no seu tempo, muitas das críticas são exageradas bastando pensar, por exemplo, na inclusão de uma personagem “gay” numa era pré “Will & Grace”: a ex-mulher de Ross. 

As piadas de Chandler em relação ao seu Pai (que se veste de mulher) e, por exemplo, o desconforto sentido por Ross com a sensibilidade assolapada do “manny” Sandy para tomar conta de Emma, são facilmente consideradas ofensivas e rotuladas de homofóbicas, ainda que a eu ver sejam profundamente inócuas. É por isso que a confissão de RAP ao i me leva a concluir que, nos nossos tempos, esta série provavelmente não teria o sucesso e aceitação que teve em anos idos. 

O que não deixa de ser curioso é que a moderação que os adeptos de certas micro-causas nos impõem, não a praticam no debate público em relação a temas de grande importância para as nossas liberdades. As moderações são seletivas, nem todas as causas merecem da proteção da indignação e do protesto no ambiente dominante. Pelo contrário, há temas em que não ser do mainstream dá direito a ataques ferozes recheados de pré-conceitos. Assim, quem não apoiar Hillary Clinton, e for crítico de Obama, é imediatamente apelidado de “Trumpista”, mesmo que, no mesmo sentido, não tenha qualquer simpatia pelo futuro presidente dos EUA.

Do mesmo modo, quem considerar Fidel Castro um brutal ditador que condenou o seu povo à fome e ao exílio, é imediatamente confrontado com as malvadezas de Pinochet, caindo num debate ininteligível, ainda que não subscreva nem defenda nenhuma forma de Ditadura.

Muitos gays, que não aceitam nenhuma forma de humor que os parodie, nas suas manifestações exigem usar da crítica e de um humor duvidoso em relação à Igreja Católica que, enquanto instituição milenar, é forçada - e bem - a aceitar todo o tipo de expressões (in)estéticas, como desfiles de freiras transexuais e padres de cabeção e tronco nu. Mas se os padres católicos não têm qualquer espaço de defesa, pior colocados estão os políticos, ou os árbitros de futebol, a quem todas as considerações e piadas são aceitáveis, incluindo as que caricaturam a profissão das mães e as que insinuam tudo o que seja em relação aos seus filhos.

O politicamente correto hoje empobrece o debate, baliza-nos, impõe-nos ofensas selecionadas, exclusivamente definidas pelos novos Torquemadas que, limitando o humor e restringindo o debate aos seus clichés simples, assim se escusam de ter de discutir temas complexos. Certas forças outrora progressistas são hoje, ironicamente, reacionárias, e os principais inimigos da normalização das relações sociais e da tolerância.

sábado, 17 de dezembro de 2016

o grande problema

de "Sol de Outono" (1941), do King Vidor, não é o imobilismo em que se encontra a personagem principal, o Harry Pulham, mas é a escolha da belíssima Ruth Hussey, para o papel de suposta esposa desinteressante. Um mismatch que tinha tudo para influenciar, de forma trágica, as escolhas de Pulham, levando-o a conformar-se com as suas circunstâncias que, bem vistas as coisas, não eram assim tão dramáticas. 





terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Jornal i# 89 - Os territórios perdidos da Europa


Esta semana, para o i,

Na semana passada, o tema do multiculturalismo voltou ao debate público europeu. “O véu que cobre toda a face tem de ser proibido, onde for legalmente necessário”, disse Angela Merkel, arrancando aplausos e galvanizando os militantes da União Democrata Cristã reunidos no congresso do partido. Esta promessa, em inícios de campanha eleitoral, conhece precedentes europeus como a França e a Bélgica (2011), e algumas cidades italianas e espanholas que legislaram nesse sentido.

Dias depois, uma reportagem do canal France 2, filmada em Paris e Lyon, mostrava bairros em plena França onde as mulheres são “indesejadas” em vários locais públicos. A jornalista acompanha duas mulheres que ocultam uma câmara no momento em que ousam entrar num café, para surpresa e espanto dos homens que o ocupam em regime de exclusividade e que rapidamente lhes perguntam ao que vêm. Segue-se uma discussão na qual um dos indivíduos explica que aquele é um território dominado por “mentalidade diferentes”.

Mesmo que a Europa se vá, aos poucos, libertando da ortodoxia do multiculturalismo, pergunto-me se será possível corrigir o resultado da aplicação das suas regras. No lugar de uma coexistência pacífica de diversidades, da tolerância em relação ao “outro”, o que vemos surgir é a imposição de uma “mentalidade” que gera um conjunto de particularismos geográficos, sociais, culturais e religiosos absolutos e que não reconhecem a diferença. “Les territoires perdus de la République”, ouvimos na reportagem. Acrescentemos à França Antuérpia e Bruxelas e aí estão os primeiros territórios perdidos da Europa, uma Europa em tempos retratada como cultural e espiritualmente una.

Jornal i# 88 - “Black Mirror”: a distopia da era digital

Sobre a série da Netflix, "Black Mirror" (aqui),

A tecnologia, sendo fonte de transformação cultural e social, não tem necessariamente de se traduzir numa fonte de bem-estar.

Não é por acaso ou mero ceticismo que, ao longo da História, a introdução de novas tecnologias dividiu as sociedades entre o entusiasmo e as inseguranças e receios vários, associados, nomeadamente, à ideia de manipulação e controlo social, de esmagamento da individualidade e da criatividade, e à suspeita do poder absoluto de um Estado que as domina. Em particular com o surgimento do computador, nos media, no cinema, na literatura, várias teorias, mais ou menos fatídicas e sensacionalistas, anunciavam uma nova era, a iminência de uma revolução no mundo ocidental. Algumas famosas visões distópicas, como a de Orwell, precocemente publicada em 1949, “Nineteen Eighty-Four”, “O Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ou a visão de “pan-ótico”, estudada por Michel Foucault com base nos planos prisionais de Jeremy Bentham, apresentados em 1791, são frequentemente citadas para fundamentar um estranho sentimento de vigilância e observação característicos das sociedades modernas. 

Recentemente, no conforto do nosso sofá, em frente à televisão ou, curiosamente, ao computador, ao tablet ou ao smartphone, “Black Mirror” é a série da Netflix que tem dado que falar justamente por ser mais uma visão distópica que explora os receios tecnológicos, neste caso, da “sociedade de informação”: vigilância em massa, hacking, cyberbullying, realidade virtual, dependência das redes sociais, inteligência artificial, gravação de memórias humanas ad aeternum, transformação de computadores e smartphones em extensões das nossas almas, etc. Nesta “Twilight Zone” dos tempos digitais, Charles Brooker, criador desta antologia de contos assustadores (uns mais do que outros, é verdade...) em que não há finais felizes, explora os efeitos colaterais de um futuro tecnologicamente dominado. Mesmo reconhecendo alguns exageros aqui (como a plasticidade e artificialidade de Lacie em “Nosedive”, a rapariga que quer popularizar o seu “eu” virtual) e ali (o episódio “The Waldo moment” é demasiado previsível), seria imprudente desprezar o objetivo geral de Brooker: despertar a nossa consciência para o simples facto de que a utilidade prática de uma determinada tecnologia (ou de várias, neste caso) não deve impedir uma reflexão crítica sobre a mesma e, sobretudo, sobre o seu impacto na organização das nossas vidas.

Jornal i #87 - Libertad o muerte, morte sem liberdade

Sobre a morte de Fidel Castro (aqui),

O deslumbramento com as utopias tem a virtude – ou o defeito – de separar o mito do homem, fabricando uma aura de herói do tipo cinematográfico que ignora olimpicamente a dimensão real e agreste da vida vivida pela pessoa concreta que o inspira. A morte física de Fidel Castro – há muito semidesaparecido do mundo dos vivos – é mais um passo no processo ideológico de perpetuação de alguém que paulatinamente foi deixando de existir como um simples homem para se tornar no símbolo de uma narrativa que sustenta há décadas diversos aparelhos políticos e retóricas de alienação dos cidadãos e de certas elites culturais, não só na América Latina, mas um pouco por todo o mundo.

“Ninguém conseguirá matar--me”, terá dito Fidel, herdeiro de Bolívar e profundo conhecedor deste processo manipulatório quase cinematográfico, consciente também de que as marcas da sua vida terrena irão ser esquecidas e que a indiferença o salvará para a história; “a História absolver-me-á”, sentenciou Fidel no início da sua luta revolucionária, e o que sobreviverá será a imagem forte, sem contexto real, de um líder carismático, firme, com todos os seus símbolos, o seu charuto, o traje militar, o Rolex no pulso, uma imagem que corporiza e dá tangibilidade sobre- -humana à revolução que supostamente libertará os povos do capitalismo, da opressão e da desigualdade.

Pouco importam as aderências da imagem ao real; a libertação é uma narrativa instrumental, dirige-se a um povo abstrato que não há jamais de existir: a utopia fabrica-se para ser capturada, serve para alienar o povo concreto, para o anestesiar durante o processo revolucionário contra as minudências da pobreza, da ausência de liberdade, da inexistência de uma justiça social concreta que apenas garante a igualdade na pobreza. 

Fidel não é apenas mitificado por carisma, reverência ou mero deslumbramento, mas por interesse. É obvio para (quase) todos que “o rei vai nu” e que Cuba é desde sempre uma nação adiada, mas, um pouco por todo o mundo, os que fingem não ver o lado tirano e despótico de Fidel e o falhanço rotundo da revolução não estão apenas condicionados pelas lágrimas e pela comoção, mas pela necessidade de perpetuar o mito e prosseguir a canonização.

Fidel, fisicamente morto, será muito mais útil aos que vivem dos dividendos da Revolução Cubana, pairando muito para lá dos limites geográficos de uma ilha onde as marcas da prostituição, da arbitrariedade, da fome, e do exílio sempre causaram uma certa incomodidade que se irá desvanecendo com o devir do tempo, agora que apenas é necessário idolatrar a sua síntese, a sua imagem, bem lapidada e sem as agruras de certas menoridades humanas que serão, a seus olhos, desculpáveis face à dimensão dos bons serviços prestados à humanidade ou, pelo menos, a alguns dos que, ainda assim, vivem confortáveis no mundo dos vivos à custa da sua mensagem.

“Libertad o muerte”, gritava Fidel, que faleceu sem cumprir os desígnios da Revolução Cubana. O seu mito, porém, sobreviverá, e não faltará quem, em seu nome, continue disposto a perpetuar a sua mensagem, lutando e perseguindo a sua peculiar ideia de liberdade. 


Todas as ditaduras são censuráveis mas, depois de ruírem, algumas são particularmente perigosas quando evoluem para uma dimensão romântica que impede, no debate público, que as submetamos ao julgamento objetivo e bem terreno da história.

Jornal i# 86 - O peso da coroa

Com atraso, aqui deixo os textos que escrevi para o i nas últimas atribuladas semanas, (aqui):

Tenho lido que em “The Crown”, a série da Netflix sobre a rainha Isabel ii, há alguns excessos. Uns bons e outros maus. Por exemplo, é a produção mais cara da Netflix até à data (mais de 100 milhões de dólares). Mas, longe de ser um fairy tale sobre a aristocracia, com castelos e príncipes, “The Crown” é sobretudo um exame rigoroso e intrusivo à vida privada da Rainha, às suas relações com o marido (que em vários momentos critica a sua frieza) e, em especial, com a irmã (que quer casar com um homem divorciado), geridas em função de um interesse superior que se impõe a tudo e todos: a continuação da monarquia e a proteção do reino.

A justificação da quase desumanização a que a rainha se vê compelida, o peso da coroa que a leva a anular-se enquanto irmã, mãe e mulher, não é óbvia. Logo no início, a avó da soberana (Eileen Atkins) explica à jovem rainha que a monarquia corporiza uma missão de Deus de dignificação da vida terrena; constitui um exemplo, um ideal a alcançar pelo comum dos mortais, um modelo de nobreza, elevação e dever para inspirar as suas vidas miseráveis (a rainha-mãe usa mesmo o termo “wretched lives”). Isabel ii empalidece, mas apenas ligeiramente porque, nos episódios que se seguem, a monarca esforça-se por cumprir essa missão, os seus deveres e tradições da coroa, excluindo qualquer tipo de interferência emocional e sentimental das suas decisões para defender todo um sistema de governo. Estoica, modesta, rigorosa e avessa ao nonsense, esta rainha é uma mulher a admirar. Quem sabe, a representação de Claire Foy desta monarca pode até fazer dela um ícone para algumas feministas. Merecer-lhe-á, quase de certeza, alguns Emmys no futuro.

Quando Isabel ii sucedeu ao pai, Churchill (o primeiro de 13 primeiros-ministros desta rainha) tinha 73 anos. Do retrato desta relação quase paternal entre ambos sobressai a representação extraordinária, e muitas vezes comovente, de John Lithgow, que representa Winston Churchill em fim de carreira, em fim de vida, e que nos varre da memória qualquer recordação remota da estroinice de Dick Solomon (“Terceiro Calhau a contar do Sol”).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

domingo, 4 de dezembro de 2016

Absolutely Fabulous

O Pablo Larrain pode filmar a vida da Jackie O., a Isabelle Huppert sintetizar várias das personagens que interpretou em "Elle", o Tom Ford fazer (mais) um filme com um guarda roupa de invejar, o Almodovar voltar à normalidade com "Julieta" e o Scorcese até pode conseguir explicar a natureza da fé no novo filme que tanto tem dado que falar. Mas tudo isto é irrelevante porque o filme do ano não é nenhum desses. E não é só - mas também - por causa da Kate Moss naquele elegantíssimo vestido verde ou por causa do Jon Hamm que, devo dizer, cada vez está mais canastro. Para quem é fã desta dupla excêntrica o filme do ano só pode ser este.




até à próxima


Glenn Ligon, Double America (2012).

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

a maior Utopia de todas

entre suspiros e "ais", prometemos (ao Outro e a nós mesmos) mudar, melhorar, não repetir uma acusação, um reparo (mesmo que sinceros), uma provocação pueril ou, também acontece, não esconder uma opinião, uma impressão pessoal ou - esta é uma constante - uma experiência do passado. Tudo isto fica guardado, não sei bem aonde, e vai, obviamente, formando uma acumulação emocional que vai pairando, sob pressão.

Não as censuro, essas duas sombrinhas concordantes quenuma condição asfixiante, buscam uma nova ordem ou apenas um ponto de ordem. Nestas piedosas promessas de evolução pessoal,  pressuposto necessário da evolução para uma relação consistente e inabalável com o Outro, procuramos a maior Utopia de todas: o equilíbrio entre duas pessoas. Talvez a única (a mais importante, é verdade) que mereça, verdadeiramente, o esforço desumano que imprimimos na sua perseguição.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A Coroa

The Crown, não é só sobre a Rainha Isabel II. Tem, por exemplo, a representação enorme, extraordinária, profundamente comovente de John Lithgow, como Churchill.



terça-feira, 15 de novembro de 2016

Jornal i# 85 - A ameaça de Trump para o progressismo na América

Hoje, para o i

Os mesmos media que nunca puseram a hipótese de Hillary Clinton perder as eleições nos Estados Unidos da América explicam-nos agora, com enorme paternalismo – a nós e às criancinhas –, as razões da vitória inesperada de Donald Trump. As narrativas que imperam para justificar a surpresa são a sublevação de uma América escondida, a rejeição do establishment e uma suposta teoria da conspiração liderada pelo FBI.

Poucos são os que apontam como fator decisivo a incapacidade de Hillary Clinton para dar continuidade à mobilização iniciada por Obama. Pelo caminho, a comunicação social empreende um exercício de futurologia sobre como será a administração do presidente eleito.

Em relação ao futuro, as decisões do novo presidente em matéria de política externa e de defesa são as que preocupam os analistas, nomeadamente a relação com a Rússia e com a Europa, bem como uma eventual desvinculação da América de tratados internacionais, como os compromissos de Paris sobre as alterações climáticas, o TTIP ou a NATO. Há, contudo, uma dimensão interna que tem passado discreta mas que, por um lado, entendo que traduz uma das maiores derrotas dos democratas nesta eleição e, por outro lado, será seguramente uma das cartas decisivas que Trump tem à sua disposição para recolher apoios junto de vários grupos ideológicos do Partido Republicano: as nomeações para o Supreme Court que terão de ser feitas nos próximos quatro anos. 

Na verdade, Trump tem neste momento o poder de determinar a inclinação ideológica e condicionar o destino da agenda “progressista”, na próxima geração, com as várias nomeações para aquele tribunal, que lhe permitirão consolidar uma maioria conservadora numa instituição com um importante papel no jogo de checks and balances da democracia americana. Não está em causa apenas a substituição do ilustríssimo Antonin Scalia: há pelo menos mais três juízes em idade avançada e que poderão ser substituídos nos próximos quatro anos: Stephen Breyer (78, nomeado por Clinton), Anthony Kennedy (80, nomeado por Reagan) e Ruth Bader Ginsburg (83, nomeada por Clinton).

Em maio deste ano, o presidente eleito antecipou já uma lista com alguns nomes da sua preferência, todos eles profundamente conservadores, dos quais destaco William Pryor Jr., que expressou de forma clara o seu desprezo em relação à decisão histórica sobre o aborto, Roe versus Wade, como sendo a “maior aberração da história do direito constitucional” americano. 

A vitória de Donald Trump não representa apenas a derrota de Hillary Clinton, podendo resultar na afirmação de uma agenda conservadora que funcione como tampão judicial para o progressismo acelerado que se impôs na América nos últimos anos.

domingo, 13 de novembro de 2016

Jornal i #84 - A herança de Obama

A semana que passou escrevi para o i,

Leio no “NY Times” que os americanos que em tempos acreditavam na hope and change de Obama são os mesmos que depositam esperança na “mudança” proposta por Donald Trump. Não vejo como é possível comparar o tipo de projetos políticos dos dois candidatos, mas terá Obama contribuído para o tipo de campanha presidencial a que temos assistido?

Estávamos em 2008 quando, pela primeira vez, era eleito um presidente dos EUA chamado Barack Hussein Obama, o primeiro presidente negro, o candidato da esperança e da mudança, com uma história de vida única que materializava uma rutura com a norma: casado com uma descendente de escravos, de origem modesta, com trabalho, esforço e dedicação estuda nas melhores universidades até conquistar a Sala Oval. O maior mérito de Obama talvez tenha sido a inspiração que essa história representou para os eleitores e a sua rejeição absoluta de qualquer tipo de pessimismo ou de negativismo. Tranquilo, seguro, carismático, Obama arrebatou o mundo, que exaltou a sua vitória em termos messiânicos, acreditando na “mudança”. Porém, o que significa hoje, política e moralmente, essa “mudança”? A resposta é difícil, mas creio que em parte tem sido dada por esta indecorosa campanha presidencial, que institui um momento de forte desesperança nacional, de desilusão democrática e insatisfação popular, marcando da pior forma o fim da promissora presidência de Obama.

Dir-me-ão que não é justo culpar Obama por ter como hipotéticos sucessores os piores candidatos de sempre, com taxas de popularidade bastante reduzidas (Hillary está em segundo lugar e Trump é o pior de sempre). Ou que eram demasiados os desafios colocados pela polarização e divisão da sociedade americana. Certo, porém, é que a um candidato capaz de criar expetativas tão altas exigia-se que não falhasse: as grandes expetativas podem causar trágicas desilusões. Porém, Obama defraudou os anseios de muitos dos seus apoiantes, algo que o próprio reconheceu em várias intervenções. Depois deste falhanço messiânico, qualquer candidato seria válido.

Ainda assim, atribuir a descrença geral e o cinismo crescente dos americanos exclusivamente a uma frustração provocada por Obama é excessivo. Esta campanha, além de contribuir para a degradação crescente, sobretudo nas “redes”, do debate público, expôs aos americanos o lado obscuro da política e o comportamento vergonhoso de algumas instituições democráticas: a falta de seriedade e transparência do comité nacional democrático a gerir a candidatura de Bernie Sanders; a confirmação de que magnatas como Trump vigarizam os impostos; as fraudes e a falta de transparência da suposta filantropia da fundação dos Clinton; a discrepância das suas posturas em público e privado, nomeadamente com grupos financeiros como o Goldman Sachs; a promiscuidade das interações entre as máquinas de campanha e os media revelada, entre outros casos, pelo envio antecipado, por Donna Brazile, de questões que seriam colocadas a H. Clinton apenas em debate; e, por último, a postura ambígua do FBI em relação à candidata democrata, com a aproximação da data das eleições.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

unable to go forward

Numa das várias entrevistas citadas no suplemento "Book Review" do NYT de hoje (p. 22) Ferrante diz assim: "I'm working intensely on a new book, ... and every morning I start writing with the anxiety of being unable to go forward".

Escrever uma tese de doutoramento não é muito diferente.


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Jornal i #83 - Vai ter golpe?

Esta semana, para o i,

Dias após Donald Trump ter sofrido um significativo revés, com a divulgação de uma conversa mantida com um dos membros do clã Bush onde a marca machista do candidato republicano nos foi oferecida sem pudor nem filtro, a campanha para as eleições norte-americanas continua a dar-nos a oportunidade de olhar pelo buraco da fechadura para espreitar os pormenores mais sórdidos daquilo que é a dimensão comportamental dos candidatos. Esta semana é a candidata democrata que está na berlinda, após o anúncio de que o FBI terá decidido reabrir uma investigação, supostamente encerrada em julho deste ano, ao uso indevido de emails por parte de Hillary. Há que ter presente que aquilo que James Comey, diretor do FBI, decidiu, é completamente inédito: a dez dias das eleições, reabriu uma investigação a uma candidata nomeada pelo Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos da América (EUA). O caso, recorde-se, gira em torno de um endereço de email de Clinton que, enquanto secretária de Estado, utilizou um servidor privado instalado em sua casa em vez de um endereço do governo, expondo à pirataria a confidencialidade de assuntos de Estado e de segredos da diplomacia americana. 

Não é fácil prever qual o impacto que esta decisão pode ter no desfecho eleitoral. Comey já deu nota de que o calendário eleitoral não vai marcar o ritmo da investigação e que não tem a certeza de quanto tempo irá demorar a revisão adicional do caso, indicando que não haverá uma clarificação antes do momento da eleição. Trump e os seus apoiantes têm aproveitado a ocasião para enfatizar aquela que é a sua principal mensagem, que a sua batalha é contra os poderosos e corruptos. O debate eleitoral há muito que deixou de ser ideológico para se tornar identitário, e a campanha republicana joga tudo na tentativa de criar em redor de Trump uma coligação dos descamisados da América, dos defensores do orgulho americano contra o mal e os poderosos, corporizados em Clinton e nas diversas administrações democratas, de Bill Clinton e Obama, de que ela será a herdeira. As sondagens continuam a dar ligeira vantagem à candidata democrata e o esforço republicano e a dramatização do seu discurso poderão não ser suficientes para evitar a eleição da primeira mulher presidente dos EUA. É sensato, contudo, não fazer uma analogia com aquilo a que assistimos recentemente no Brasil, onde a eleição democrática da presidenta Dilma, debilitada por um processo judicial, terminou na sua destituição. Muitos apontam esse risco, de Hillary Clinton iniciar o seu mandato a braços com um processo que, pela sua densidade, a fragilizará politicamente, abrindo o flanco a uma instrumentalização política do fenómeno judiciário para obter a sua destituição. Que isso ocorra naquela que, há décadas, é considerada a democracia mais forte do planeta, é paradigmático da crise institucional que perpassa pela generalidade das suas nações.

P.

P. era um homem indestrutível. Pelo menos parecia, fazendo de tudo para nos fazer senti-lo desse jeito. Alto, fanfarrão, largo de costas, com uma barriga farta, olhos esbugalhados, toda uma aparência larger than life construída ao som de amplas gargalhadas e de movimentos ligeiramente bruscos, que o glorificavam e lhe atribuíam uma magnitude contagiante. Este foi um homem abençoado pela privação de qualquer espécie de angustia existencial, impotência, imobilismo - tudo aquilo que nos afetam a nós, o comum dos mortais. Essa sua característica era o que lhe permitia desempenhar uma função heróica na vida em sociedade, um colaborador da História e não um mero espectador. P. fazia parte daquele conjunto de pessoas a quem a Natureza (ou Deus, eu sei lá) não tinha equipado com a capacidade de estar quieto mais de cinco segundos, sobretudo quando não era o centro das atenções. Convencido ser senhor de verdades totais, que proclamava com uma voz sonora, P.  estava acostumado a ser escutado e a causar sensação nas salas. Quando não preenchia essa condição natural fumava, bebia, soltava mais uma gargalhada, agitava-se na cadeira e abanava a ponta do pé, enquanto procurava enquadrar socialmente a próxima toada.

A mim, encantava-me ouvi-lo: ficava por ali, numa espécie de pasmo a sentir toda aquela vibração bestial. Fazia-me lembrar outra pessoa com quem em tempos convivi e que, por brevíssimos momentos, muito me encantou com tanta truculência social - até descobrir que tudo aquilo era representação teatral.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

o verdadeiro Halloween







Ontem, pela primeira vez na minha vida, festejei o Halloween - o verdadeiro. Com um casal de amigos que tem dois filhos lá fomos, rua acima, rua abaixo, com os vizinhos, fazer o trick or treat. A América gasta 10 biliões de euros anualmente com o Halloween, pelas imagens percebe-se bem porquê. As fotografias foram tiradas em Georgetown, onde me deslumbrei com as casas e com  a simpatia, elegância, distinção, dos seus proprietários. A real treat, I say.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Jornal i #82 - A Rapariga no Comboio

A semana passada, para o i,

Recordo-me apenas de dois filmes sobre as histórias de três mulheres que, de uma forma ou de outra, estão relacionadas entre si: “As Horas”, de Stephen Daldry, e “Interiores”, de Woody Allen.

No primeiro, Julianne Moore, Nicole Kidman e Meryl Streep; no filme de Woody Allen, Diane Keaton, Mary Beth Hurt, Kristin Griffith e Geraldine Page. É esse o ponto de partida de “A Rapariga no Comboio” (Tate Taylor, 2016), que nos apresenta três atrizes de uma geração nova da qual se destaca Emily Blunt, num desempenho estrondoso que deixa na sombra Rebecca Ferguson e Haley Bennett. 

A rapariga no comboio é Rachel (Emily Blunt), cujo estado físico e psicológico nos leva constantemente a desconfiar da sua culpa em relação a um desaparecimento que será o tema central do filme. Divorciada, com problemas de álcool e bastante instável, Blunt passa os seus dias no comboio entre Westchester e Nova Iorque a fantasiar obsessivamente com um casal (Luke Evans e Haley Bennett) que aparenta viver a vida perfeita que lhe escapou. Não é por acaso que Evans e Bennett vivem na mesma rua onde Rachel em tempos viveu com o seu ex-marido, a quem ocasionalmente persegue. Ou será? 

De forma algo precipitada, sem grandes cerimónias, Rachel acorda sem memória e ensanguentada, depois de mais uma noite de exageros que coincide com a noite do desaparecimento de Bennett. É então que tem início um mistério mais confuso do que intrigante. Numa tentativa bastante infeliz de misturar Alfred Hitchcock com Agatha Christie, a comparação com “Em Parte Incerta” (David Fincher, 2014) também é por demais óbvia: ambos thrillers, baseados em bestsellers, com títulos semelhantes, lançados no início de outubro e com protagonistas no feminino. Ambos tratam o tema do casamento moderno, abusos, traições e violência. “A Rapariga no Comboio” tem, felizmente, Emily Blunt, cuja representação de mulher bêbeda, perdida, inconsolável, que precisa urgentemente de ajuda nos assusta e nos faz duvidar dela própria. Rachel está psicologicamente descompensada, mas será perigosa? O rosto de Blunt vai assumindo modos e estados que não imaginamos possíveis à medida que Rachel sofre e se transfigura numa volatilidade frágil. Enfim, provavelmente, a representação de Blunt é demasiado boa para um thriller deste tipo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

uma grande aflição interior

"Não sou o Rembrandt, não sou o Velázquez, não sou o Goya. Mas ao nível português acho que fiz uma obrinha que realmente é demonstrativa de um tipo que tinha alguma coisa, uma grande aflição interior. Por esse lado, estou tranquilo."

Entrevista de Cruzeiro Seixas ao Observador, aqui.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Stringer (2)

não sei se duas temporadas chegam para me convencer da viabilidade (já não falo em interesse) de "The Wire" sem Stringer Bell. São termos incompatíveis em todos os sentidos possíveis. Acima de tudo no sentido estético.