terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Jornal i# 88 - “Black Mirror”: a distopia da era digital

Sobre a série da Netflix, "Black Mirror" (aqui),

A tecnologia, sendo fonte de transformação cultural e social, não tem necessariamente de se traduzir numa fonte de bem-estar.

Não é por acaso ou mero ceticismo que, ao longo da História, a introdução de novas tecnologias dividiu as sociedades entre o entusiasmo e as inseguranças e receios vários, associados, nomeadamente, à ideia de manipulação e controlo social, de esmagamento da individualidade e da criatividade, e à suspeita do poder absoluto de um Estado que as domina. Em particular com o surgimento do computador, nos media, no cinema, na literatura, várias teorias, mais ou menos fatídicas e sensacionalistas, anunciavam uma nova era, a iminência de uma revolução no mundo ocidental. Algumas famosas visões distópicas, como a de Orwell, precocemente publicada em 1949, “Nineteen Eighty-Four”, “O Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ou a visão de “pan-ótico”, estudada por Michel Foucault com base nos planos prisionais de Jeremy Bentham, apresentados em 1791, são frequentemente citadas para fundamentar um estranho sentimento de vigilância e observação característicos das sociedades modernas. 

Recentemente, no conforto do nosso sofá, em frente à televisão ou, curiosamente, ao computador, ao tablet ou ao smartphone, “Black Mirror” é a série da Netflix que tem dado que falar justamente por ser mais uma visão distópica que explora os receios tecnológicos, neste caso, da “sociedade de informação”: vigilância em massa, hacking, cyberbullying, realidade virtual, dependência das redes sociais, inteligência artificial, gravação de memórias humanas ad aeternum, transformação de computadores e smartphones em extensões das nossas almas, etc. Nesta “Twilight Zone” dos tempos digitais, Charles Brooker, criador desta antologia de contos assustadores (uns mais do que outros, é verdade...) em que não há finais felizes, explora os efeitos colaterais de um futuro tecnologicamente dominado. Mesmo reconhecendo alguns exageros aqui (como a plasticidade e artificialidade de Lacie em “Nosedive”, a rapariga que quer popularizar o seu “eu” virtual) e ali (o episódio “The Waldo moment” é demasiado previsível), seria imprudente desprezar o objetivo geral de Brooker: despertar a nossa consciência para o simples facto de que a utilidade prática de uma determinada tecnologia (ou de várias, neste caso) não deve impedir uma reflexão crítica sobre a mesma e, sobretudo, sobre o seu impacto na organização das nossas vidas.

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