terça-feira, 21 de julho de 2015

Julieta Boldrini no autocarro

Algures perto do Parlamento, em Lisboa, entra uma senhora na casa dos 60, com cabelo loiro apanhado, make up pesada e roupas esvoaçantes. Rosto estreito atormentado por um olhar ávido que constantemente filtra factos à sua volta, procurando "a razão de ser das coisas". Repleta de uma energia quase irracional, vai tagarelando com o motorista de forma ininterrupta, mas sempre teatral e excessiva, por vezes exagerando nos modos bruscos, imprimindo-lhes demasiada dinâmica.

Apesar das circunstâncias, imagino-a como Julieta Boldrini, da classe média alta, a viver numa casa de bonecas, cercada de empregados e subserviente a um marido que, contudo, a obriga a andar de autocarro para não perder o sentido da realidade.

O autocarro pára. Julieta sai e entra num sítio que tem uma placa "The Decadente", como que obedecendo aos sussurros de Laura.


famílias

"Iam caindo num silêncio que parecia o efeito do sono e de um mau dia. Na verdade, evitavam as palavras que, sem que um homem queira, sendo ditas, causam melindres e até sangue nas famílias".

Bastardia, Hélia Correia, p. 20.

sábado, 18 de julho de 2015

espiral recessiva





"Concentras-te a fazer pa não cair é um vicio
Até esqueceres porque é que tás a ouvir o início às vinte e três
E outra vez 
Já esqueceste o objectivo 
Outra vez
E outra vez
Esqueceste os teus porquês 
Esqueceste e então"

sexta-feira, 17 de julho de 2015

lugar comum sobre a infância

"Manuela, aos quinze anos, era uma rapariga dividida em duas, que levava a sua dupla existência com a dissimulação de um adulto e a leviandade de uma criança persuadida de que se fechar os olhos ninguém a vê, se é que este lugar comum sobre a infância tem alguma correspondência com a realidade."

Teresa Veiga, gente melancolicamente louca, p. 65.

terça-feira, 14 de julho de 2015

jornal i #30 E tudo a crise levou


"Passados alguns anos, os dois amigos cruzam-se. Não se viam há bastante tempo e muito tinha mudado. A aproximação foi cautelosa e cuidada, sem grandes exaltações. Observaram-se e analisaram-se, calados e baços, rasgando um tímido sorriso, um comentário mortiço e pouco entusiástico. Depois da demissão, Yanis instalou-se em Sydney, longe de Atenas. Pago a peso de ouro para tirar partido dos interstícios do capitalismo, enquanto homem das finanças que ganha dinheiro à custa dos pobres. Era um homem diferente: apostava contra a dívida grega e ganhava milhões. Já nem se preocupava em corrigir os modos burgueses e usava uma gravata cuja cor do dia seguinte era facilmente previsível, até para um olho mais aluado. Esquecera a ideia de que qualquer coisa que venha do povo é boa.

Como tantos outros homens de esquerda, Alexis, obrigado a ceder à ditadura da austeridade, abdicara do risco, da tragédia, do melodrama e, apostado na ponderação, dedicava-se hoje a causas menores, embora nem por isso menos compensadoras, como os direitos dos animais e das florzinhas que hoje ocupam o lugar político anteriormente preenchido pela classe operária. Tsipras já não queria mudar o mundo, mas terminara uma tese de doutoramento que fazia dele um perito e o obrigou a abandonar a liderança do partido.
O promissor e revolucionário Syriza, funesto para a Grécia, ficou sem a sua sedutora ideologia, varrida por uma brisa fresca que levou para longe a bruxaria e o fanatismo que se agarravam aos seus militantes como um miasma, levando também consigo o torpe ano de 2015. Tudo desertou, ficou apenas o palco vazio de uma ideia e de uma Grécia que não existiu. Nem existirá."

terça-feira, 7 de julho de 2015

jornal i #29 um referendo à solidariedade europeia

Hoje, para o jornal i:
“Ainda não se sabia o resultado final do referendo grego e já Catarina Martins bradava pela “solidariedade europeia” no cenário de vitória do “não” que abre portas a uma “nova Europa”. E, entenda-se, a vitória do “não” é no sentido de “não a mais austeridade e sim a mais dinheiro”.
É caricatural, no mínimo, falar-se em solidariedade que, segundo a elementar Wikipédia, mais não é que um acto de bondade para com o próximo, uma situação de cooperação mútua entre duas ou mais pessoas.
Este conceito de solidariedade europeia, accionado pela esquerda sempre que há um Estado-membro fragilizado por irresponsabilidade própria, torna-se ridículo se pensarmos que se está a referendar o produto de um acto de bondade e ainda mais ridículo é que o referendo incida sobre a vontade do beneficiário desse acto.
Portanto, o referendo deveria ser alargado a todos os povos europeus que, num acto de solidariedade (com um cariz algo compulsivo, diga-se), emprestarão mais dinheiro à Grécia.
O que responderiam os europeus a: “Está disposto a aumentar a sua carga de impostos para ajudar a Grécia?” ou “Concorda com o perdão da dívida grega?” Aí sim, poderia verdadeiramente falar-se de uma “nova Europa”, mais democrática.
Por outro lado, a santidade da democracia directa, neste contexto, é bastante fragilizada quando em causa está a preservação do vínculo a entidades como a União Europeia ou a zona euro, cujo grau de complexidade e lógica burocrática tem vindo a agravar-se.
Ou seja, poderá um referendo reflectir a vontade de um povo de ser parte de uma organização cujos contornos não conhece? Até que ponto não estará o Syriza a aproveitar-se da assimetria informativa dos gregos, expressa numa irracionalidade decisória?”