quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Jornal i #90 - Progressistas ontem, reacionários hoje

Ontem, para o jornal i,

Há duas semanas o “i” publicou uma entrevista com o Ricardo Araújo Pereira (RAP) onde o humorista confessava as censuras do politicamente correto e a dificuldade de usar, nos dias de hoje, certos termos em contexto de humor, como “marrecos, coxos e mariconços”. Os ofendidos rapidamente se manifestaram e as reações não tardaram a surgir, sobretudo por parte de quem representa a(s) causa(s) das “minorias” visada(s), ainda que se tenha registado uma menor ênfase na defesa de marrecos e coxos.

Coincidência ou não, há algum tempo que revejo “Friends”, a famosa série que conta as aventuras e desventuras de um grupo de amigos que vivem em Nova Iorque. Ainda não terminei este longo processo, mas creio, próxima do desenlace, estar em condições de concluir que os ofendidos por RAP não são apreciadores da série. Perguntei ao Google que rapidamente me a conhecer, pela simples pesquisa dos termos “Friends” e “homofobia”, uma infindável lista de críticas por parte do jornalismo progressista de defesa de micro-causas. Devo dizer, porém, que em vários aspetos, e situada no seu tempo, muitas das críticas são exageradas bastando pensar, por exemplo, na inclusão de uma personagem “gay” numa era pré “Will & Grace”: a ex-mulher de Ross. 

As piadas de Chandler em relação ao seu Pai (que se veste de mulher) e, por exemplo, o desconforto sentido por Ross com a sensibilidade assolapada do “manny” Sandy para tomar conta de Emma, são facilmente consideradas ofensivas e rotuladas de homofóbicas, ainda que a eu ver sejam profundamente inócuas. É por isso que a confissão de RAP ao i me leva a concluir que, nos nossos tempos, esta série provavelmente não teria o sucesso e aceitação que teve em anos idos. 

O que não deixa de ser curioso é que a moderação que os adeptos de certas micro-causas nos impõem, não a praticam no debate público em relação a temas de grande importância para as nossas liberdades. As moderações são seletivas, nem todas as causas merecem da proteção da indignação e do protesto no ambiente dominante. Pelo contrário, há temas em que não ser do mainstream dá direito a ataques ferozes recheados de pré-conceitos. Assim, quem não apoiar Hillary Clinton, e for crítico de Obama, é imediatamente apelidado de “Trumpista”, mesmo que, no mesmo sentido, não tenha qualquer simpatia pelo futuro presidente dos EUA.

Do mesmo modo, quem considerar Fidel Castro um brutal ditador que condenou o seu povo à fome e ao exílio, é imediatamente confrontado com as malvadezas de Pinochet, caindo num debate ininteligível, ainda que não subscreva nem defenda nenhuma forma de Ditadura.

Muitos gays, que não aceitam nenhuma forma de humor que os parodie, nas suas manifestações exigem usar da crítica e de um humor duvidoso em relação à Igreja Católica que, enquanto instituição milenar, é forçada - e bem - a aceitar todo o tipo de expressões (in)estéticas, como desfiles de freiras transexuais e padres de cabeção e tronco nu. Mas se os padres católicos não têm qualquer espaço de defesa, pior colocados estão os políticos, ou os árbitros de futebol, a quem todas as considerações e piadas são aceitáveis, incluindo as que caricaturam a profissão das mães e as que insinuam tudo o que seja em relação aos seus filhos.

O politicamente correto hoje empobrece o debate, baliza-nos, impõe-nos ofensas selecionadas, exclusivamente definidas pelos novos Torquemadas que, limitando o humor e restringindo o debate aos seus clichés simples, assim se escusam de ter de discutir temas complexos. Certas forças outrora progressistas são hoje, ironicamente, reacionárias, e os principais inimigos da normalização das relações sociais e da tolerância.

sábado, 17 de dezembro de 2016

o grande problema

de "Sol de Outono" (1941), do King Vidor, não é o imobilismo em que se encontra a personagem principal, o Harry Pulham, mas é a escolha da belíssima Ruth Hussey, para o papel de suposta esposa desinteressante. Um mismatch que tinha tudo para influenciar, de forma trágica, as escolhas de Pulham, levando-o a conformar-se com as suas circunstâncias que, bem vistas as coisas, não eram assim tão dramáticas. 





terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Jornal i# 89 - Os territórios perdidos da Europa


Esta semana, para o i,

Na semana passada, o tema do multiculturalismo voltou ao debate público europeu. “O véu que cobre toda a face tem de ser proibido, onde for legalmente necessário”, disse Angela Merkel, arrancando aplausos e galvanizando os militantes da União Democrata Cristã reunidos no congresso do partido. Esta promessa, em inícios de campanha eleitoral, conhece precedentes europeus como a França e a Bélgica (2011), e algumas cidades italianas e espanholas que legislaram nesse sentido.

Dias depois, uma reportagem do canal France 2, filmada em Paris e Lyon, mostrava bairros em plena França onde as mulheres são “indesejadas” em vários locais públicos. A jornalista acompanha duas mulheres que ocultam uma câmara no momento em que ousam entrar num café, para surpresa e espanto dos homens que o ocupam em regime de exclusividade e que rapidamente lhes perguntam ao que vêm. Segue-se uma discussão na qual um dos indivíduos explica que aquele é um território dominado por “mentalidade diferentes”.

Mesmo que a Europa se vá, aos poucos, libertando da ortodoxia do multiculturalismo, pergunto-me se será possível corrigir o resultado da aplicação das suas regras. No lugar de uma coexistência pacífica de diversidades, da tolerância em relação ao “outro”, o que vemos surgir é a imposição de uma “mentalidade” que gera um conjunto de particularismos geográficos, sociais, culturais e religiosos absolutos e que não reconhecem a diferença. “Les territoires perdus de la République”, ouvimos na reportagem. Acrescentemos à França Antuérpia e Bruxelas e aí estão os primeiros territórios perdidos da Europa, uma Europa em tempos retratada como cultural e espiritualmente una.

Jornal i# 88 - “Black Mirror”: a distopia da era digital

Sobre a série da Netflix, "Black Mirror" (aqui),

A tecnologia, sendo fonte de transformação cultural e social, não tem necessariamente de se traduzir numa fonte de bem-estar.

Não é por acaso ou mero ceticismo que, ao longo da História, a introdução de novas tecnologias dividiu as sociedades entre o entusiasmo e as inseguranças e receios vários, associados, nomeadamente, à ideia de manipulação e controlo social, de esmagamento da individualidade e da criatividade, e à suspeita do poder absoluto de um Estado que as domina. Em particular com o surgimento do computador, nos media, no cinema, na literatura, várias teorias, mais ou menos fatídicas e sensacionalistas, anunciavam uma nova era, a iminência de uma revolução no mundo ocidental. Algumas famosas visões distópicas, como a de Orwell, precocemente publicada em 1949, “Nineteen Eighty-Four”, “O Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ou a visão de “pan-ótico”, estudada por Michel Foucault com base nos planos prisionais de Jeremy Bentham, apresentados em 1791, são frequentemente citadas para fundamentar um estranho sentimento de vigilância e observação característicos das sociedades modernas. 

Recentemente, no conforto do nosso sofá, em frente à televisão ou, curiosamente, ao computador, ao tablet ou ao smartphone, “Black Mirror” é a série da Netflix que tem dado que falar justamente por ser mais uma visão distópica que explora os receios tecnológicos, neste caso, da “sociedade de informação”: vigilância em massa, hacking, cyberbullying, realidade virtual, dependência das redes sociais, inteligência artificial, gravação de memórias humanas ad aeternum, transformação de computadores e smartphones em extensões das nossas almas, etc. Nesta “Twilight Zone” dos tempos digitais, Charles Brooker, criador desta antologia de contos assustadores (uns mais do que outros, é verdade...) em que não há finais felizes, explora os efeitos colaterais de um futuro tecnologicamente dominado. Mesmo reconhecendo alguns exageros aqui (como a plasticidade e artificialidade de Lacie em “Nosedive”, a rapariga que quer popularizar o seu “eu” virtual) e ali (o episódio “The Waldo moment” é demasiado previsível), seria imprudente desprezar o objetivo geral de Brooker: despertar a nossa consciência para o simples facto de que a utilidade prática de uma determinada tecnologia (ou de várias, neste caso) não deve impedir uma reflexão crítica sobre a mesma e, sobretudo, sobre o seu impacto na organização das nossas vidas.

Jornal i #87 - Libertad o muerte, morte sem liberdade

Sobre a morte de Fidel Castro (aqui),

O deslumbramento com as utopias tem a virtude – ou o defeito – de separar o mito do homem, fabricando uma aura de herói do tipo cinematográfico que ignora olimpicamente a dimensão real e agreste da vida vivida pela pessoa concreta que o inspira. A morte física de Fidel Castro – há muito semidesaparecido do mundo dos vivos – é mais um passo no processo ideológico de perpetuação de alguém que paulatinamente foi deixando de existir como um simples homem para se tornar no símbolo de uma narrativa que sustenta há décadas diversos aparelhos políticos e retóricas de alienação dos cidadãos e de certas elites culturais, não só na América Latina, mas um pouco por todo o mundo.

“Ninguém conseguirá matar--me”, terá dito Fidel, herdeiro de Bolívar e profundo conhecedor deste processo manipulatório quase cinematográfico, consciente também de que as marcas da sua vida terrena irão ser esquecidas e que a indiferença o salvará para a história; “a História absolver-me-á”, sentenciou Fidel no início da sua luta revolucionária, e o que sobreviverá será a imagem forte, sem contexto real, de um líder carismático, firme, com todos os seus símbolos, o seu charuto, o traje militar, o Rolex no pulso, uma imagem que corporiza e dá tangibilidade sobre- -humana à revolução que supostamente libertará os povos do capitalismo, da opressão e da desigualdade.

Pouco importam as aderências da imagem ao real; a libertação é uma narrativa instrumental, dirige-se a um povo abstrato que não há jamais de existir: a utopia fabrica-se para ser capturada, serve para alienar o povo concreto, para o anestesiar durante o processo revolucionário contra as minudências da pobreza, da ausência de liberdade, da inexistência de uma justiça social concreta que apenas garante a igualdade na pobreza. 

Fidel não é apenas mitificado por carisma, reverência ou mero deslumbramento, mas por interesse. É obvio para (quase) todos que “o rei vai nu” e que Cuba é desde sempre uma nação adiada, mas, um pouco por todo o mundo, os que fingem não ver o lado tirano e despótico de Fidel e o falhanço rotundo da revolução não estão apenas condicionados pelas lágrimas e pela comoção, mas pela necessidade de perpetuar o mito e prosseguir a canonização.

Fidel, fisicamente morto, será muito mais útil aos que vivem dos dividendos da Revolução Cubana, pairando muito para lá dos limites geográficos de uma ilha onde as marcas da prostituição, da arbitrariedade, da fome, e do exílio sempre causaram uma certa incomodidade que se irá desvanecendo com o devir do tempo, agora que apenas é necessário idolatrar a sua síntese, a sua imagem, bem lapidada e sem as agruras de certas menoridades humanas que serão, a seus olhos, desculpáveis face à dimensão dos bons serviços prestados à humanidade ou, pelo menos, a alguns dos que, ainda assim, vivem confortáveis no mundo dos vivos à custa da sua mensagem.

“Libertad o muerte”, gritava Fidel, que faleceu sem cumprir os desígnios da Revolução Cubana. O seu mito, porém, sobreviverá, e não faltará quem, em seu nome, continue disposto a perpetuar a sua mensagem, lutando e perseguindo a sua peculiar ideia de liberdade. 


Todas as ditaduras são censuráveis mas, depois de ruírem, algumas são particularmente perigosas quando evoluem para uma dimensão romântica que impede, no debate público, que as submetamos ao julgamento objetivo e bem terreno da história.

Jornal i# 86 - O peso da coroa

Com atraso, aqui deixo os textos que escrevi para o i nas últimas atribuladas semanas, (aqui):

Tenho lido que em “The Crown”, a série da Netflix sobre a rainha Isabel ii, há alguns excessos. Uns bons e outros maus. Por exemplo, é a produção mais cara da Netflix até à data (mais de 100 milhões de dólares). Mas, longe de ser um fairy tale sobre a aristocracia, com castelos e príncipes, “The Crown” é sobretudo um exame rigoroso e intrusivo à vida privada da Rainha, às suas relações com o marido (que em vários momentos critica a sua frieza) e, em especial, com a irmã (que quer casar com um homem divorciado), geridas em função de um interesse superior que se impõe a tudo e todos: a continuação da monarquia e a proteção do reino.

A justificação da quase desumanização a que a rainha se vê compelida, o peso da coroa que a leva a anular-se enquanto irmã, mãe e mulher, não é óbvia. Logo no início, a avó da soberana (Eileen Atkins) explica à jovem rainha que a monarquia corporiza uma missão de Deus de dignificação da vida terrena; constitui um exemplo, um ideal a alcançar pelo comum dos mortais, um modelo de nobreza, elevação e dever para inspirar as suas vidas miseráveis (a rainha-mãe usa mesmo o termo “wretched lives”). Isabel ii empalidece, mas apenas ligeiramente porque, nos episódios que se seguem, a monarca esforça-se por cumprir essa missão, os seus deveres e tradições da coroa, excluindo qualquer tipo de interferência emocional e sentimental das suas decisões para defender todo um sistema de governo. Estoica, modesta, rigorosa e avessa ao nonsense, esta rainha é uma mulher a admirar. Quem sabe, a representação de Claire Foy desta monarca pode até fazer dela um ícone para algumas feministas. Merecer-lhe-á, quase de certeza, alguns Emmys no futuro.

Quando Isabel ii sucedeu ao pai, Churchill (o primeiro de 13 primeiros-ministros desta rainha) tinha 73 anos. Do retrato desta relação quase paternal entre ambos sobressai a representação extraordinária, e muitas vezes comovente, de John Lithgow, que representa Winston Churchill em fim de carreira, em fim de vida, e que nos varre da memória qualquer recordação remota da estroinice de Dick Solomon (“Terceiro Calhau a contar do Sol”).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

domingo, 4 de dezembro de 2016

Absolutely Fabulous

O Pablo Larrain pode filmar a vida da Jackie O., a Isabelle Huppert sintetizar várias das personagens que interpretou em "Elle", o Tom Ford fazer (mais) um filme com um guarda roupa de invejar, o Almodovar voltar à normalidade com "Julieta" e o Scorcese até pode conseguir explicar a natureza da fé no novo filme que tanto tem dado que falar. Mas tudo isto é irrelevante porque o filme do ano não é nenhum desses. E não é só - mas também - por causa da Kate Moss naquele elegantíssimo vestido verde ou por causa do Jon Hamm que, devo dizer, cada vez está mais canastro. Para quem é fã desta dupla excêntrica o filme do ano só pode ser este.




até à próxima


Glenn Ligon, Double America (2012).