quarta-feira, 18 de julho de 2018

um certo tipo de discurso

Miguel Tamen: (...) E desconfiar intuitivamente daquelas coisas que são ditas com um tom muito enfático por muitas pessoas. Quando há muitas pessoas a dizerem a mesma coisa, adotam um tom muito característico ...

Ler: Usado, por exemplo, no name dropping? É uma parte desse tom.

Miguel Tamen: Sim, um tom no sentido prosódico do termo. Quase todas as pessoas na televisão, nas arenas políticas, nas conferências profissionais, usam esse tom: o de alguém-que-está-a-ensinar-coisas. É um tom que sugere que elas veem coisas que não são evidentes para mais ninguém e que elas nos vão explicar a todos com-é-que-essas-coisas-são.

Ler: Em grande parte, o sucesso dessas pessoas depende da absoluta evidência e banalidade do que dizem.

Miguem Tamen: Mas o sucesso depende de os outros estarem convencidos de que els sabem mais. Trata-se de pessoas que têm acesso a conhecimentos e a segredos especiais e que se dignam comunicá-los, com o tom um bocadinho impaciente e um bocadinho enfadado de um professor para quem os alunos são todos estúpidos. É o tom habitual dos debates na televisão e das discussões políticas e intelectuais em Portugal. É o tom também de um certo discurso intimidatório relativo à arte e à literatura. É aquilo a que um crítico literário chamava ''demonstrações no sentido militar do termo'".


Revista Ler, Primavera 2018, p. 26.


domingo, 10 de junho de 2018

qualquer coisa amarga como fim de doçura

"- Ana... Eu vou-me embora, amanhã. Tenho que ir, bem sabes. Adeus, Ana. - Dum fôlego disse tudo aquilo; e intimamente felicitou o seu arrojo de cobarde. 
- Vai-se embora? - Era como se ela achasse natural, como se fosse muito natural, já esperada, a resolução duma partida. Deitada na cama, deixara de bamboar os pés descalços, de fazer malabarismos com as chinelas de verniz; abria-se um vácuo, uma profundidade, dentro de si; qualquer coisa que voava, que fugia; qualquer coisa amarga como fim de doçura; qualquer coisa como um rugir de multidão desvairada dentro duma cabeça quieta, erguida, atenta."

Agustina Bessa-Luís, Deuses de Barro, p. 104

domingo, 27 de maio de 2018

Maio de 68


"Não por acaso se associa quase sempre um romantismo juvenil ao Maio de 68. E, tudo bem visto e ponderado, foi precisamente esta a herança que ficou e perdurou, exacerbada pelo aggiornamento pós-modernista, que não passa de um hiper-romantismo que entronizou como valor supremo os direitos da soberania do “Eu”: a ditadura do subjectivismo radical; o sujeito como critério de tudo, da verdade e da mentira, do belo e do feio, do bem e do mal. Maio de 68 não tinha uma agenda política definida e coerente. Mas toda a gente, ou muita gente, tinha uma agenda pessoal pressurosa: libertar o “Eu” das regras e convenções que o silenciavam e que, silenciando, matavam. O nosso “Eu”, reduzido a um sussurro clandestino, ora lírico, ora gemente, precisava de ar para respirar e gritar alto as suas dores, e as suas exigências. (...)".

"Estivemos lá, mas esse é um mundo que está a desaparecer à nossa frente", Maria de Fátima Bonifácio, aqui.

lenda de infantilidade

- Não sabes do teu irmão? Que é dele? - Falou com a boca cheia, a disfarçar a insistência; estava coradinha e bonita.
- Não querem lá ver, está tola?! - Alarmou-se, a Maria José. O irmão! O seu irmão! Nutria por ele um complexo sentimento; era carinho, maternal cuidado; era um tanto incestuoso ciúme; era sobretudo desejo de domínio. O seu irmão, querido, aborrecido irmão! E tratava-o como a criança impertinente, preocupava-se em não deixar esmorecer essa lenda de infantilidade, exibia os seus deveres de irmã mais velha (...).

Agustina Bessa-Luís, Deuses de barro, p. 46.